O divino inspira o humano

5 de janeiro de 2024

A Bíblia, que é o registro literário da história da revelação de Deus ao homem com o intuito de salvá-lo, escrita a partir da ação conjunta entre o divino e o humano, é uma obra sagrada porque é fruto de uma inspiração sobrenatural. Diferentemente da bibliografia produzida pelo ser humano desde suas origens, como resultado de uma tendência natural para refletir sobre si mesmo e sobre o mundo, os 73 livros que formam a Bíblia católica são considerados pela Igreja textos inspirados por Deus, ou seja, redigidos sob a autoridade do Espírito Santo (cf. 2Pd 1,21). Tais livros, compostos por autores que, segundo os desígnios do plano salvífico de Deus, registraram tudo e unicamente aquilo que Ele inspirou, contêm a Palavra da Verdade que liberta o homem do jugo do mal e do pecado (cf. Jo 8,31-32), isto é, Jesus, o Verbo Eterno do Pai (cf. Jo 1,1-2).

Os homens e mulheres que foram escolhidos e inspirados pela ação sobrenatural do Espírito de Deus, e  agraciados pelas faculdades e capacidades necessárias para colaborar no processo de compilação literária da revelação divina, são chamados de hagiógrafos. O termo grego em questão, formado pelas palavras hágios, que significa “sagrado”, e graphos, que designa “escrita”, diz respeito à sacralidade da missão desenvolvida por aqueles que redigiram os textos bíblicos: tratam-se de autores sagrados na medida em que, à luz da inspiração divina, escreveram a mensagem que salva. Vale ressaltar, no entanto, que o conceito de inspiração bíblica não pode ser confundido com a ideia de uma psicografia. Segundo o espiritismo, doutrina que não é compatível com os ensinamentos católicos, a faculdade de escrever cartas sob a influência de espíritos desencarnados pode ou não ser praticada de forma consciente por um médium. Os autores sagrados não foram estenógrafos inconscientes que escreveram o que foi ditado por Deus: eles são efetivamente autores dos livros bíblicos, pois redigiram os textos de forma consciente, historicamente situada e a partir das realidades religiosa, cultural, social, política, econômica e geográfica em que viveram.

Sob o impulso e a orientação do Espírito Santo, os hagiógrafos tiveram sua missão autoral respeitada no projeto salvífico de Deus, participando ativamente na construção textual e na elaboração da mensagem teológica que cada livro bíblico encerra, inclusive com suas limitações. A concepção de hagiógrafos, porém, não deve ser restrita à noção de autores que escreveram textos solitariamente. É certo que vários livros foram redigidos por sujeitos históricos individuais, como por exemplo algumas cartas de Paulo (cf. Rm, 1ª e 2ª Cor, Gl, Fl, Ts e Fl); todavia, a grande maioria dos textos inspirados foram escritos por comunidades que, no Primeiro Testamento, abraçaram o credo monoteísta através do testemunho e do ensinamento dos patriarcas e dos profetas, e, no Segundo Testamento, acolheram a fé cristã por meio da vida e da missão de Jesus Cristo e dos apóstolos. A Bíblia é uma obra feita pelas mãos de muitas pessoas cujos ouvidos estavam ligados à pregação de alguma figura exponencial. Assim, vários livros são compilações comunitárias da catequese de um patriarca, profeta ou apóstolo, sofrendo revisões, aplicações e adaptações até chegarem à forma como foram canonizados. A definição da natureza autoral de um livro bíblico depende de estudos exegéticos que buscam evidências textuais, culturais, históricas e geográficas que possibilitam designar se a redação foi realizada de forma individual ou coletiva.

Esse debate teológico em torno da hagiografia, vinculado à questão da sacralidade dos textos bíblicos, requer um aprofundamento dos critérios que levaram a Igreja a reconhecer a inspiração de um livro e inseri-lo no que se convencionou chamar de cânon. De origem grega, a palavra cânon aparece no Segundo Testamento (cf. Gl 6.16; 2Cor 10,13-16; Fl 3,16) com o sentido de regra, norma ou medida; logo, cânon bíblico é o conjunto de livros inspirados que organizam a fé e a vida de uma comunidade a partir de uma doutrina e de uma moral religiosas específicas. O cânon da Bíblia hebraica, que representa o Primeiro Testamento da Bíblia cristã, foi determinado pelos anciãos judeus reunidos no concílio de Jâmnia, entre os séculos I e II d.C., definindo que um livro seria considerado inspirado quando fosse comprovada a sua antiguidade, a sua redação em língua hebraica e no território palestinense, a sua concordância com os ensinamentos da Torá (cf. Gn, Ex, Lv, Nm e Dt) e a sua aceitação e uso por parte da comunidade judaica. Na ocasião do concílio, os rabinos rejeitaram sete livros (cf. Tb, Jt, Sb, Eclo, Br, 1 e 2 Mc) por terem sido escritos em língua grega ou fora da Palestina, optando pelo “cânon restrito” do Primeiro Testamento com 39 livros. Porém, como tais textos já se encontravam na Septuaginta – como é chamada a versão grega da Bíblia hebraica, traduzida entre o século III e I a.C. e utilizada por Jesus e pelos apóstolos – foram mantidos na Bíblia católica, composta, então, pelo “cânon amplo” do Primeiro Testamento com 46 livros.

O cânon do Segundo Testamento foi definido nos primeiros séculos da Igreja cristã, apesar dos livros terem sido escritos até o final do século I d.C.. O registro dos 27 livros canônicos aparece ineditamente numa carta pascal escrita por Santo Atanásio de Alexandria, em 367 d.C., sendo confirmado pelos concílios de Hipona, em 393, e Cartago, em 397. Foram considerados como inspirados os livros neotestamentários com procedência, direta ou indiretamente, apostólica (“critério canônico da apostolicidade”), cuja antiguidade atesta a concordância com os ensinamentos de Jesus Cristo e a universalidade salvífica de sua revelação (“critério canônico da regra de fé”), e que eram utilizados pelas comunidades primitivas nas celebrações litúrgicas (“critério canônico do senso comum dos fiéis”). A regra mais evidente para a canonização de um livro bíblico, tanto no Primeiro quanto no Segundo Testamento, é a sua aceitação e uso por parte da comunidade de fé, seja ela judaica ou cristã, evidenciando que é a eclesialidade suscitada pelo próprio Espírito Santo – O inspirador das Escrituras – que permite a percepção da sacralidade do texto.

Assim, se os livros bíblicos foram escritos em (e por) comunidades, logo eles também foram canonizados – no sentido de serem definidos como inspirados – em (e por) comunidades, já que é na dinâmica da Igreja reunida que o Espírito Santo se manifesta e age (cf. At 2,1). Existe, portanto, uma relação intrínseca e indissolúvel entre a inspiração divina e a fé da Igreja para a determinação dos livros revelados por Deus em vista da salvação humana: a Igreja não inventou o cânon bíblico, selecionando de forma instrumental ou aleatória os textos que lhe eram convenientes, mas testemunhou o cânon sob a ação do mesmo Espírito que o inspirou. Isto é, assim como os textos foram inspirados de modo sobrenatural, também a comunidade cristã, congregada por desígnio divino, foi capacitada para descobrir, reconhecer e acolher o cânon. Nessa dinâmica de protagonismo da comunidade na composição e organização dos livros bíblicos também se encontra a questão da interpretação. Foi na genuinidade da vida eclesial que o Espírito Santo suscitou os livros e os conduziu à categoria de textos canônicos, da mesma forma que é na Igreja que Ele se revela O intérprete das Sagradas divinamente inspiradas.

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