Logos e ethos: o divino com raízes humanas

5 de agosto de 2024

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A Bíblia, longe de ser uma obra miraculosamente enviada do céu à Terra como um livro alado lançado por Deus das alturas na direção das mãos humanas, é uma mensagem sobre o divino elaborada a partir do chão, portadora de profundas raízes fincadas no solo concreto da história. Apesar de seu conteúdo privilegiar aquilo que é transcendente, ele é dito e escrito de modo imanente, ou seja, embora a Sagrada Escritura seja um texto teológico, inspirado por Deus para anunciar as maravilhas que Ele mesmo realizou em favor do seu povo (cf. Sl 40,5) por meio de Jesus Cristo, a forma como essa proclamação ocorre é humana. A revelação divina foi percebida e registrada segundo a compreensão de pessoa e de mundo dos povos que participaram do enredo bíblico, de sorte que é fundamental  ler as passagens usando os óculos do ambiente cultural em que foram produzidas, situando honestamente seus personagens, linguagem e costumes para alcançar uma adequada compreensão da mensagem que os livros carregam, e a certeza de que Deus se mostrou na história humana.

Essa abordagem da Sagrada Escritura segundo a cultura dos povos bíblicos é o passo propedêutico para toda e qualquer interpretação sobre uma referida perícope: antes de buscar o que o texto quer dizer, faz-se pertinente observar o que de fato ele diz; e para bem compreender o que o texto transmite é necessário lê-lo à luz da cultura que subsidiou sua redação. A leitura da Bíblia em seu contexto originário evita que ela seja usada como pretexto para fins que nunca estiveram presentes na consciência e na experiência teológicas dos hagiógrafos e das comunidades que a redigiram. Há que se observar, portanto, a íntima relação existente entre o Logos divino e o ethos humano no que diz respeito à formação dos textos sagrados! Compreendido como o conjunto de características e costumes que formam a identidade de um povo, o ethos – ἦθος, termo de origem grega que pode ser traduzido como cultura – influencia a forma como o Logos – Λόγος, termo igualmente grego que significa verbo e é utilizado para se referir a Jesus (cf. Jo 1,14) – é dito.

Sendo assim, se o modo de viver dos povos bíblicos incidiu na acolhida e no registro da manifestação da Palavra Eterna na história, um olhar atento para a cultura semita e helênica pode evidenciar significados cada vez mais compreensíveis e profundos para os textos bíblicos. Semitas são todos os povos do Oriente, entre eles hebreus e árabes, cuja origem remete a Sem, um dos três filhos de Noé, que, mostrando-se temente a Deus, povoou a Terra após o dilúvio (cf. Gn 9,18) e deu origem às gerações das quais nasceu Abraão (cf. Gn 11,10-26). Tanto o Primeiro quanto o Segundo Testamento foram compostos sob a influência da cultura semita, marcadamente: clânica e patriarcal, formada por  clãs (grupos familiares) cujos membros mantinham laços de consanguinidade e eram governados pela figura masculina; teocêntrica e hierarquizada, estruturada segundo valores religiosos sobrenaturais e dividida em classes sociais com posições e privilégios dissonantes; rural e guerreira, baseada economicamente na agropecuária de subsistência e na disputa pela conquista e posse de territórios.

Dois exemplos de semitismo que justificam a relevância de se conhecer a cultura dos povos bíblicos em vista de uma justa compreensão da mensagem que uma perícope carrega são os binômios leite-mel e coração-rins, para citar apenas alguns. Na passagem de Ex 33,3, quando Moisés recebeu a ordem para levantar acampamento da planície do Monte Sinai em direção à Canaã, o hagiógrafo colocou na boca de Deus as seguintes palavras: “sobe para a terra onde corre leite e mel”. Conhecendo o aspecto rural do semitismo é possível entender que o território prometido para Israel não se trata de um local mágico em que os rios são feitos de leite e mel, mas de um espaço geográfico propício à criação de gado leiteiro e à agricultura, já que o mel explorado pelo semitas não provinha da apicultura (criação de abelhas), mas da plantação de tâmaras. Já no discurso sobre a idolatria do reino de Judá, o profeta Jeremias escreveu que Deus disse: “Eu, o Senhor, examino o coração e experimento os rins” (Jr 17,10); diferentemente da cultura ocidental em que o coração é sede dos sentimentos e o cérebro é referência para o pensamento, no semitismo o coração é sede dos pensamentos e os rins são identificados com os sentimentos. Assim, de acordo com o relato profético, Deus examina os pensamentos e prova os sentimentos.

Em relação ao Segundo Testamento, o semitismo pode ser percebido em Mt 19,24, quando, ao usar a expressão “passar um camelo pelo buraco de uma agulha”, possivelmente Jesus tenha falado de uma porta estreita existente na muralha da cidade de Jerusalém, chamada agulha, pela qual só se passava a pé, já que foi construída para evitar as invasões de tropas estrangeiras. Da mesma forma, quando Jesus anunciou a tripla negação de Pedro antes que o galo cantasse, em Mt 26,34, Ele não se referiu necessariamente ao animal, mas ao levita que era chamado de galo, porque assim como o galo convida o dia para amanhecer com seu canto, o levita era responsável por tocar a trombeta na madrugada, convocando o povo de Israel para a oração matutina no Templo. Além do semitismo presente nos dois Testamentos, faz-se importante conhecer o ethos helênico que também emoldura os escritos neotestamentários.

O helenismo é um fenômeno cultural que ocorreu a partir do século IV a.C., quando o rei da Macedônia, Alexandre Magno (356-323 a.C.), conquistou diferentes territórios no Ocidente e no Oriente, disseminando neles a cultura grega e provocando um intercâmbio de costumes entre os povos que habitavam a região do Mar Mediterrâneo. Ao avançarem sobre o império macedônio, entre os século III e I a.C., os romanos se apropriaram da estrutura cosmopolita criada pelo helenismo, inclusive no que respeita à universalização do idioma grego, para ampliarem sua dominação sobre os povos semitas; isso explica porque os livros do Segundo Testamento foram escritos em língua grega. O ethos  helênico, portanto, reflete o modo greco-romano de compreender a realidade e, nesse sentido, os textos neotestamentários estão carregados de helenismos. Na perícope sobre a libertação do possesso de Gerasa, o demônio que atormenta o homem se denomina “legião” (Lc 8,30) quando é interrogado por Jesus; o evangelista Lucas, ao chamar o espírito mau de legião, faz uma clara referência à perversidade praticada pelos legionários em relação aos judeus, isto é, pelos soldados do exército romano.

Os casos de semitismo e helenismo citados atestam que o processo de formação da Bíblia é análogo à germinação de uma planta: embora cresça verticalmente, ela está muito bem enraizada na horizontalidade; todavia fale das coisas do céu com o intuito de transmitir o Logos redentor, isto é, a Palavra feita carne para a salvação do mundo – Jesus, os textos inspirados por Deus nasceram a partir do ethos humano, atravessados pela história com suas nuances culturais, religiosas, geográficas, políticas e econômicas. Ignorar as raízes humanas que embasaram o trabalho redacional e os objetivos dos hagiógrafos é empobrecer a semântica da Palavra que é sempre “viva, eficaz e mais cortante que qualquer espada de dois gumes” (Hb 4,12).