O divino sendo dito pelo humano

20 de setembro de 2024

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Sendo a Bíblia uma obra coautoral do divino em parceria com o humano, é imprescindível considerar não só a mensagem sobrenatural que os textos sagrados carregam, mas também a cultura a partir da qual foram produzidos. Desse modo, as línguas em que os livros bíblicos foram escritos (Hebraico, Aramaico e Grego) carregam especificidades que não devem ser ignoradas por quem deseja compreender melhor os sentidos de uma passagem da Escritura. Considerando a língua como uma convenção social, ou seja, como um combinado que é produzido coletivamente por um grupo específico e que não se universaliza naturalmente, é preciso entender as particularidades que caracterizam a língua dos povos bíblicos e que, por conseguinte, revelam a compreensão de mundo que eles possuíam e o modo como transmitiram escrita e oralmente a revelação divina. Da mesma forma que o Português falado no Brasil apresenta termos inexistentes noutras culturas, como a palavra saudade que exprime um modo de afetividade própria dos que vivem nesse país, as línguas bíblicas possuem estruturação morfossintática e verbetes muito característicos.

O Hebraico (עברית, Ivrit) e o Aramaico são línguas irmãs que participam do tronco semita ou cananeu, isto é, originaram-se na Palestina, entre os povos afro-asiáticos que viveram há pelo menos quatro milênios. Desde os tempos mais remotos, os judeus utilizam a língua hebraica especialmente para o culto religioso no Templo de Jerusalém por se tratar da “Língua Sagrada” (לשון הקודש, Lashon Hakodesh), falada por Deus e utilizada por Ele para criar o mundo e se comunicar com o ser humano. O Aramaico, originado no reino de Aram (descendente de Sem, o filho primogênito de Noé), atual Síria, entre os séculos XI e VIII a.C., passou a ser usado como língua franca, isto é, para a comunicação cotidiana voltada à economia e à política, pelos judeus depois do Exílio Babilônico (586-538 a.C.). Dessa forma, ao longo da história do Judaísmo, o Hebraico se consolidou como uma língua litúrgica, cujo uso restringiu-se às orações e às elites, de sorte que foi utilizado na redação de praticamente todos os livros do Primeiro Testamento; popularizado entre as camadas menos favorecidas da sociedade judaica, o Aramaico se ramificou em diferentes dialetos que permanecem vivos até hoje e foi usado na escrita de algumas passagens bíblicas como Gn 31,47; Esd 4,8 – 6,18;7,12-26; Dn 2,4b – 7,28 e Jr 10,11; dentre outras.

Embora atualmente o Aramaico utilizado no Oriente Médio seja escrito com o alfabeto siríaco, nos tempos bíblicos ele foi redigido com as mesmas letras do alfabeto hebraico, também chamado de Alef-Beit, por isso o conhecimento do Hebraico é fundamental para o próprio entendimento do Aramaico. Os textos bíblicos foram anotados pelos escribas segundos as normas da Escrita Ashurita (כְּתָב אַשּׁוּרִי, Ktav Ashurit), a forma clássica do Hebraico na qual o alfabeto é composto por 22 consoantes; esses notários tementes a Deus e especializados na caligrafia e nas técnicas da língua hebraica foram responsáveis por garantir a perfeição das figuras de cada letra. Exclusivamente consonantal e lida da direita para a esquerda, a língua hebraica possui um alfabeto formado por letras cujos formatos carregam sentidos que, ao serem combinados, conferem uma profunda semântica espiritual aos textos bíblicos. Na Cabalá judaica (קַבָּלָה, Qabbalah), que nada mais é do que a tradição mística do povo de Israel, cada letra com sua composição visual é associada a um conceito e possuiu um valor numérico (calculado pela ciência chamada de Guematria), além de outros aspectos.

Por exemplo, o livro de Gênesis começa com o versículo “No princípio”, que em hebraico se diz Bereshit, cuja letra inicial é beit (בּ) com valor numérico 2 e significado místico de casa. Dessa forma, não por acaso, a primeira letra da Bíblia é a segunda letra do alfabeto hebraico, justamente porque ela representa o propósito da criação que é forjar o mundo natural como uma morada para Deus, identificado com a letra alef (ﬡ): sendo a primeira do alfabeto e correspondendo ao número 1, alef é o símbolo místico de Deus criador; assim, alef (1) precede beit (2) e beit (criação) é posterior à alef (Criador). Como se nota, a língua hebraica possui uma arquitetura teológica especial e a compreensão da semântica espiritual que subjaz às letras e às palavras amplia o sentido das Escrituras. Os próprios números que aparecem nos textos bíblicos constituem outra exemplificação disso: longe de representarem quantidades exatas e cronologicamente fixadas, os números estão carregados de sentidos teológicos, como por exemplo os números 1 (Deus), 2 (sobra), 3 (plenitude), 4 (preparação), 5 (lei), 6 (imperfeição), 7 (perfeição), 8 (perfeição reforçada), 9 (incompletude), 10 (completude), 12 (eleição) etc. Outro exemplo de peculiaridade do Hebraico é a inexistência de superlativo, por isso usam-se expressões duplicadas ou no plural, como “Santo dos santos” (=santíssimo) e “Deus dos deuses” (=diviníssimo).

Como o Hebraico só possui consoantes, a pronúncia correta das palavras depende do aprendizado oral: a convivência com os antigos oferecia ao ouvinte o conteúdo fonético da língua. Para conservar inalterada a tradição linguística oral que proporciona a leitura correta dos textos bíblicos em Hebraico, escribas medievais chamados de massoretas, entre os séculos VI e X d.C., tanto na Babilônia quanto na Palestina, produziram o que se convencionou chamar de Texto Massorético: cópias hebraicas da Sagrada Escritura com a inserção de sinais gráficos que representam as vogais (por exemplo: ַ  patá – a / ֵֵֵֵ  tsêre – e / ֶ  sêgol – é). Nos textos originais do hebraico o nome de Deus aparece escrito como um tetragrama (יהוה, YHWH) que é impronunciável pelos judeus por uma questão de respeito e por isso é substituído na leitura pela palavra Adonai (אֲדֹנָי), que significa “meu Senhor”. Com base no uso da palavra aleluia (הַלְּלוּיָהּ, halleluyah, cf. Sl 105,1) pela própria Escritura, cujo significado é “louvai a Jah” (halelu-Yah), os judeus identificaram o nome de Deus com Javé (Yahweh). Ao vocalizar o tetragrama no século VI d.C., alguns rabinos fundiram-no com as vogais do termo Adonai, cuja letra inicial é muda e se pronuncia como “e”, surgindo o nome Jeová (Yehowah). Vale ressaltar que os cristãos católicos conservam a antiga tradução do nome de Deus, Javé, em concordância com a tradição primitiva de Israel, ao passo que os protestantes aderiram à tradução medieval, Jeová, a partir do século XVI.

Se o Primeiro Testamento foi escrito em Hebraico e Aramaico, os livros neotestamentários foram redigidos em Grego, língua de origem indo-europeia que se dividiu em diferentes dialetos ao longo da história. O grego bíblico, também chamado de Grego Koiné (comum), é uma mistura do grego ático (usado pelos filósofos clássicos em Atenas e divulgado pelo imperador macedônio Alexandre Magno durante suas conquistas territoriais no século IV a.C.) com elementos estrangeiros. O dialeto Koiné se tornou língua franca nos domínios do Império Macedônico, incluindo a região da Palestina, permanecendo como tal até o início do século III d.C., quando foi substituído pelo Latim, língua oficial do Império Romano. O Grego Koiné do Segundo Testamento, portanto, é uma versão hebraicizada da língua comercial utilizada entre os séculos IV a.C. e II d.C, já que assimilou expressões judaicas como maranatha (“vem, Senhor”, cf. 1 Cor 16,22), abba (“papai”, cf. Mc 14,36), amém (“assim seja”, cf. Mt 6,13), aleluia (“louvai a Javé”, cf. Ap 19,1), hosana (“salva-nos”, cf. Jo 12,13) etc. No que diz respeito às peculiaridades do Grego, é interessante saber que há palavras polissêmicas em relação às quais é difícil encontrar uma tradução: no tríplice questionamento de Jesus a Pedro (cf. Jo 21,15-19), por exemplo, a tradução portuguesa coloca a palavra genérica “amor” na boca de ambos; no texto original grego, Jesus pergunta utilizando o termo ágape (αγάπη), que significa amor sem limites, e Pedro responde com a palavra philia (φιλíα), que designa amizade. Logo, a homogeneização das várias expressões de amor da cultura grega pela língua portuguesa impede o leitor de compreender que Jesus esperava de Pedro um amor elevado, sacrificial, vivido até às últimas consequências, enquanto ele foi capaz de oferecer apenas um sentimento de bem querer, de fraternidade.

Durante o século I d.C., enquanto o Hebraico se fortaleceu como língua exclusivamente litúrgica e o Aramaico como língua para a comunicação informal e cotidiana, sendo o idioma falado por Jesus durante suas pregações, por exemplo, o Grego se consolidou como língua universal, política e comercial, servindo para que os autores neotestamentários escrevessem os livros sobre a pessoa e a missão de Cristo. Dessa forma, aproximar-se do modo como o divino foi dito pelo humano, investigando as particularidades dos idiomas bíblicos, é reconhecer na fé que a língua dos sábios traz cura (cf. Pr 12,18) porque antes que quaisquer palavras fossem ditas por eles, o Senhor já as conhecia (cf. Sl 139,4) e as utilizou para a salvação do mundo.

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