O divino nos limites geofísicos humanos

13 de dezembro de 2024

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A consciência geofísica dos povos bíblicos é bastante limitada em relação às descobertas astronômicas que o ser humano realizou a partir do Renascimento Científico nos séculos XV e XVI, quando matemáticos, geógrafos, astrônomos, físicos e geômetras empreenderam estudos revolucionários no campo da ciência natural. Sendo assim, a mensagem salvífica, embora não seja prejudicada no seu genuíno interesse de transmitir à humanidade o convite para que ela participe plenamente da comunhão com Deus, encontra-se emoldurada pelos limites do pensamento geocêntrico e terraplanista. Após a formulação científica do sistema heliocêntrico de Nicolau Copérnico (1473-1543), da comprovação de que os planetas realizam o movimento elíptico em torno do sol por Johannes Kepler (1571-1630), da descoberta das leis de física mecânica desenvolvidas por Isaac Newton (1643-1727) e da elaboração da teoria da relatividade de Albert Einstein (1879-1955), a cosmovisão astronômica que serviu de base para a expressão teológica da comunicação bíblica foi posta em cheque.

Entender que os hagiógrafos impregnaram os textos bíblicos com os mais diferentes aspectos culturais, inclusive geográficos e físicos, sabendo que muitos deles foram superados pelo avanço da ciência natural, é reconhecer que Deus respeitou os limites da consciência humana no processo de formação da Bíblia. Longe de causarem prejuízo à salvação humana, os limites geocêntrico e terraplanista da antiguidade demonstram que Deus, na sua insondável sabedoria, permitiu que o homem exercesse sua liberdade e autonomia científico-cultural, contribuindo para a compilação da mensagem divina com suas capacidades e dentro de seus horizontes de conhecimento. Mediante esse espírito de confiança na sabedoria divina que falou metafisicamente ao homem através dos limites de sua cultura para fazer-se entender, de forma que Deus restringiu voluntariamente a grandeza de sua mensagem sobrenatural à imperfeita naturalidade da comunicação humana, é imprescindível entender a cosmovisão geocêntrica e terraplanista que perpassa a construção dos textos revelados.

Cientificamente canonizada nos escritos do astrônomo e geógrafo grego Cláudio Ptolomeu (100-168 d.C.), de maneira evidente na sua obra Almagesto, a teoria geocêntrica nasceu do interesse filosófico de entender e explicar o movimento dos planetas e dos corpos celestes. A ideia de que a terra se encontra imóvel no centro do sistema cósmico, de sorte que os astros orbitam em torno dela, remonta a tradições mitológicas arcaicas e se fundamenta nas reflexões de Aristóteles (384-322 a.C.), Eudoxo de Cnido (390-340), Aristarco de Samos (310-230 a.C.) e Hiparco de Niceia (190-120 a.C.), dentre outros. O geocentrismo, portanto, é uma hipótese que esteve presente em inúmeras narrativas sobre o universo desde a origem da humanidade, tanto religiosas quanto científicas, aparecendo em diferentes povos e épocas. Nesse contexto, os povos bíblicos testemunharam que a Terra ocupava o centro do universo por acreditar que ela é a morada de Deus (cf. Sl 68,16s) e a casa de sua obra-prima, o ser humano.

Embora a Bíblia não seja um compêndio científico, a linguagem astronômica que ela utiliza para falar da realidade teológica, isto é, da experiência do povo de Israel com Deus, revela uma compreensão geocêntrica do cosmos: “a Terra está firme e jamais se abalará” (Sl 93,1), como se estivesse fixada no centro do universo; e “o sol se levanta, o sol se põe e se apressa para voltar a seu lugar, onde renasce” (Ecl 1,5), movimentando-se ao redor do planeta. Justamente por conceber estática e centralmente o posicionamento da Terra no universo, os povos bíblicos também acreditavam que o mundo fosse plano, sem que, como isso, a Bíblia defenda ou sirva de base para o terraplanismo: os textos revelados não afirmam explicitamente que o mundo é plano porque esse tipo de especulação científica escapa a sua finalidade teológica; porém, as narrativas bíblicas do Segundo, mas, sobretudo, do Primeiro Testamento permitem uma aproximação da cosmovisão astronômica das civilizações antigas, dentre as quais se encontram os povos que colaboraram na composição da Sagrada Escritura.

De acordo com o que é possível apreender das narrativas bíblicas, os povos antigos acreditavam que a Terra fosse um disco, provavelmente com quatro extremidades (cf. Jó 38,13; Mc 13,27), sobre o qual repousariam todos os elementos da criação (cf. Sl 115,16): ventos, húmus, árvores, montanhas, animais, seres humanos e as águas que estão debaixo do firmamento (cf. Gn 1,6). Erguendo-se por cima deste disco, a abóbada celeste (cf. Jó 22,14; Am 9,6), também chamada de firmamento ou céu, é como uma esfera que envolve os astros e estrelas – “estende o céu como toldo, arma-o como tenda para morar” (Is 40,22), ao longo da qual existem comportas (cf. Gn 7,11) que são abertas para que as águas que estão acima do firmamento (cf. Gn 1,7) se derramem sobre a terra provocando as chuvas. Por sobre as águas do firmamento estão os céus nos quais Deus tem sua morada eterna e de onde governa toda a criação: “Ele se assenta no seu trono, acima da cúpula da terra” (Is 40,22). A Terra é sustentada por colunas (cf. Jó 38,6; Sl 75,4) que estão fixadas no abismo (cf. Hb 1,10), também chamado de sheol ou hades (cf. Sl 139,8; Prov 30,16), que é o submundo de trevas e de morte onde Deus não habita: “quando Ele estabeleceu os céus, lá estava eu; quando traçou o horizonte sobre a superfície do abismo” (Prov 8,27).

Como se pode deduzir da descrição feita, a constituição geofísica do imaginário bíblico influencia também a concepção equivocada do céu e do inferno como lugares físicos: o primeiro nas alturas, e o segundo nas profundezas da Terra. O fato é que céu e inferno são estados espirituais e não físicos: o céu nada mais é do que a eternização do estado espiritual de plena união da alma humana com Deus, em que prevalece o total amor, cuja gênese se encontra na vida terrena (através da fé e das boas obras) e se estende pelos séculos sem fim; de igual forma, o inferno é a eternização do estado espiritual de plena ruptura da alma humana com Deus, no qual os sofrimentos e tormentos, representados pelo simbolismo do fogo que desassossega e aterroriza, se dão porque a alma sabe que é amada e desejada por Deus, mas escolheu livremente viver como se Ele não existisse. Assim, a recuperação da consciência geofísica dos povos bíblicos colabora para a compreensão cultural e teológica de muitos textos da Sagrada Escritura, e, também, para o esclarecimento de concepções teológicas fundamentais à fé cristã.

Imagem de svecaleksandr249 por Pixabay