Acervo divino organizado pelo humano
A forma atual de organização dos 73 livros bíblicos em blocos temáticos, capítulos e versículos é resultado de um amplo processo de maturação da consciência teológica e do uso litúrgico que a comunidade cristã fez dos textos revelados ao longo dos séculos. Os manuscritos originais, ou os fragmentos que a humanidade tem daqueles que são considerados os relatos mais antigos do povo de Israel e da Igreja cristã primitiva sobre a experiência de fé que viveram, não possuíam uma divisão pedagógica e muito menos uma referenciação metricamente calculada para facilitar a localização das perícopes, como são chamadas as partes de um texto bíblico com sentido completo, e frases. A estruturação da Palavra de Deus a partir de critérios metodológicos que possibilitam o acesso fácil e rápido em vista da utilização comunitária dos textos, no que diz respeito à catequese ou à liturgia, é uma iniciativa relativamente tardia. Atuando como coautor dos livros, o ser humano colaborou na sua organização ao participar da Igreja que trabalhou como uma bibliotecária do acervo divino.
Confirma-se, a partir desse aspecto, a íntima relação entre a Igreja e a transmissão da revelação divina: a própria organização bíblica é um evento eclesial na medida em que a comunidade cristã, sob a mesma ação divina que inspirou a redação dos textos canônicos, dispôs os conteúdos revelados em esquemas lógicos gerais, formando os blocos temáticos e subdividindo internamente cada livro. Ordenada, no sentido amplo, em Primeiro e Segundo Testamentos, que narram, respectivamente, a aliança provisória de Deus com o povo de Israel (cf. Ex 24) e a aliança definitiva de Deus com a humanidade no sangue de Jesus (cf. Lc 22,20), a Bíblia cristã apresenta subdivisões temáticas. A Sagrada Escritura se organiza tal como se fosse duas grandes estantes de livros reunidas em par e separadas em oito prateleiras nas quais se encontram as obras que possuem afinidade de conteúdo, compondo uma grande biblioteca divina. Através de seu acervo organizado, conservado e transmitido ao longo dos milênios, Deus cumpre na história o desejo humano de Jó: “oxalá as minhas palavras fossem escritas agora! Oxalá fossem gravadas num livro; com pena de ferro e com chumbo fossem escritas na rocha para sempre!” (Jó 19,23-24).
O Primeiro Testamento, constituindo uma das estantes, organiza-se em quatro prateleiras com os cinco Livros do Pentateuco (Gênesis, Êxodo, Levítico, Número e Deuteronômio); os dezesseis Livros Históricos (Josué, Juízes, I e II Samuel, Rute, I e II Crônicas, I e II Reis, Esdras, Neemias, Tobias, Judite, Ester, I e II Macabeus); os sete Livros Sapienciais (Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Sabedoria e Eclesiástico); e os dezoito Livros Proféticos, sendo quatro livros dos profetas maiores (Isaías, Jeremias, Ezequiel e Daniel) e quatorze livros dos profetas menores (Lamentações, Baruc, Oseias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias). De igual forma, as quatro prateleiras do Segundo Testamento, formando a outra grande estante do acervo divino, guardam os quatro Evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João) e o livro de Atos; as treze cartas paulinas (Romanos, I e II Coríntios, Gálatas, Filipenses, I e II Tessalonicenses, Efésios, Filemon, Colossenses, I e II Timóteo e Tito); as sete cartas católicas – no sentido de universais (Tiago, I e II Pedro, I, II e III João, Judas) e Hebreus; e o livro de Apocalipse.
Além dessa ampla estruturação temática da Bíblia, a Igreja também subdividiu os conteúdos dos livros sagrados em capítulos e versículos. Desde pelo menos o século IV, com o bispo Eusébio de Cesareia (265-340), há registros de sistemas de organização interna dos textos revelados, tais como os “cânones eusebianos” ou “seções amonianas” utilizados durante a Idade Média, cuja proposta metodológica era a divisão dos quatro evangelhos canônicos em aproximadamente 1165 seções, a saber: Marcos com 235 seções, Mateus com 355, Lucas com 343 e João com 232 seções. Somente no século XIII surgem os primeiros sistemas de divisão da Vulgata latina em capítulos: na primeira metade do século, com a versão que ficou conhecida como “Bíblia Parisiense” do arcebispo inglês Estêvão Langton (1150-1228); e, na segunda metade, com o cardeal italiano Hugo de Sancto Caro (1200-1263) que inclusive propôs, além da divisão capitular, uma primeira separação de versículos em letras de A a G. Duzentos anos depois, o frade italiano Pagnino de Lucca, santo dominicano, produziu a versão da Bíblia dividida em versículos numerados que foi publicada em Lion, na França, em 1527.
Na esteira da organização do acervo divino, Roberto Estienne (1503-1559), renomado tipógrafo francês, católico convertido tardiamente ao calvinismo, aproveitando-se das contribuições de Langton e Pagnino, revisou os sistemas de divisão da Bíblia e publicou, em 1553, a proposta de separação versicular que é utilizada universalmente hoje. Assim, na segunda metade do século XVI, na cidade suíça de Genebra, calvinistas liderados por William Whittingham (1524-1579) conseguiram produzir e publicar a primeira versão completa da Sagrada Escritura com a divisão em capítulo, feita por Langton, e em versículos, realizada por Estienne. Desde 1560, com o lançamento da “Bíblia de Genebra” em inglês, o catolicismo se empenhou em preparar uma versão oficial da Vulgata latina com as divisões capitulares e versiculares em uso na época, publicando-a em 1592 sob o governo do papa Clemente VIII (1536-1605). A partir do século XVI, portanto, o sistema de Langton e Estienne ganhou ampla aceitação entre católicos e protestantes, além de judeus, como forma de padronização estrutural dos textos bíblicos.
Organizado logicamente, o patrimônio escriturístico da fé passou a ser mais facilmente acessado pelos fiéis, especialmente no que se refere ao uso comum dos textos sagrados na catequese e na liturgia: ao folhear cada página da Bíblia é como se o ser humano entrasse numa biblioteca divina, tendo disponível para sua consulta estantes e prateleiras separadas por conteúdos temáticos afins, e divisões que permitem encontrar frases e narrativas específicas com facilidade e rapidez. Destarte, a sabedoria humana que é um dom, trabalhando para a organização metodológica do acervo divino, colabora para que a profundidade inescrutável da sabedoria e do conhecimento de Deus (cf. Rm 11,33) seja divulgada em todo o mundo como testemunha a todas as nações (cf. Mt 24,14).
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