Artigo: Em tempos de dor e sofrimento, ajude-nos o discernimento

25 de agosto de 2020

Por padre Douglas Marques –

Na semana passada fomos todos surpreendidos pela notícia do aborto realizado por uma criança de 10 anos, vítima de estupro há pelos menos cinco anos. Em tempos de pandemia e tantas mortes, parece que, infelizmente, sempre cabe uma dose a mais de dor e sofrimento. É certo que as mazelas do nosso povo sempre desafiará a Igreja a uma postura que se apresente cristã, humana, solidária e maternal. Por isso mesmo que um caminho trilhável diante de momentos como esse devem ser proposto.
Diante de situações de ampla repercussão, a Igreja é sempre instada a dar sua opinião, a exortar os fiéis, a reavivar seus valores e a iluminar com a fé em Cristo Jesus os contextos de sombras. Como fazer isso? Acredito que muita gente saiba o pensamento da Igreja. Sabe que pelas leis canônicas as leis devem ser seguidas. Sabem também que a moral pregada pela Igreja não admite tal possibilidade. Cabe-nos, aqui, um olhar pastoral sobre as pessoas e suas realidades. Este caminho, além de ser o mais humano, mais concreto e mais solidário, é a chave para toda a reflexão.

O triste fato da menina do estado do Espírito Santo tem muito a ensinar. Diante do fato, será sempre importante distinguir causas e efeitos. O aborto ganhou visibilidade, mas ele é efeito, consequência e não causa. A causa de tudo isso foi uma violência vivida, há cinco anos, por uma menina de 10 anos. Toda manifestação precisa focar nesse sofrimento, nessa dor, pois é a violência que gera morte. Haja vista tantos e tantas que sofrem, vitimados por uma violência sem tamanho. Transformar o efeito em causa, ou seja, entrar direto na questão do aborto sem condierar o drama das pessoas envolvidas, por mais doloroso que seja, enfraquece a fala da Igreja, pois discursos podem se tornar frios, racionais demais, insensíveis e isso afasta da Igreja seu caráter de mãe acolhedora, solidária, perita em humanidade…É preciso entrar no drama humano.

Nesse itinerário, é importante levar em consideração três bens: a vida da mãe, o equilíbrio familiar e a vida da criança em gestação. Nessa ordem mesmo! Explico. A menina de 10 anos passou por uma experiência de dor e sofrimento indizíveis. Por mais que seja apoiada, existe uma dose de sofrimento que é só dela e esta sequer poderá ser partilhada. Assim, ela ocupa o primeiro lugar das atenções. Em seguida é preciso pensar o equilíbrio familiar, pois é sempre o entorno familiar, com suas complexidades, limites e virtudes, que ajudará a criança ou decidirá por ela. Imaginemos a pressão que vivenciaram; a exposição maldosa e desumana… Uma criança de apenas 10 anos, marcada pelo sofrimento, por mais que diga ser livre e ter vontade de fazer algo, não reúne as condições para tomar uma decisão de capital importância. Vemos exemplos de outras mulheres, vividas e maduras, sofrerem diante de tal dilema. O que dizer de uma criança! Apoiar a família e ajudá-la a encontrar o equilíbrio é fundamental. Será sensato e perspicaz perceber qual consciência os envolvidos têm da situação. É preciso prescrutar o coração, a história das pessoas, seu modo de entender a vida. Pensemos que aqueles que têm o poder de ajudar no discernimento da criança são donos de uma consciência errônea vencível. Podem ser ajudados! Se, por outro lado, têm uma consciência errônea invencível? A liberdade de consciência, agora mais esclarecida, assumirá o papel de decidir.

Diante da clareza desses três bens, cabe à Igreja, concretizada na paróquia, na palavra do bispo ou mesmo da CNBB, dar suporte quais sejam as necessidades: psicológicas, financeiras, médicas ou de fé. É importante levar em consideração alguns elementos antes de toda e qualquer manifestação pública: atentar primeiramente para a violência do fato, pois este causa dor e comoção coletivas. Ser empático, ter compaixão, expressar sentimentos de solidariedade e apoio. Exortar os pais e responsáveis a uma cuidado mais zeloso aos filhos, suas ações, reações, silêncios, rebeldias entre outros. Esse olhar amoroso pode revelar muito! Valorizar a vida em todas as dimensões vem logo a seguir, ligada a um forte sentimento de solidariedade diante do sofrimento que vive a família. É aqui que se reforça ainda mais o valor da vida. O aborto é consequência. Se se cuida da vida, o aborto desaparece, perde sua razão de existir.

Penso que seguir tal itinerário ajudará a Igreja a ser o que é: mãe amorosa! Manifestações públicas como as que aconteceram em nada ajudam a Igreja a mostrar Jesus Cristo, pelo contrário, colocam mais entraves e acabam por camuflar todo o belo trabalho que a própria Igreja realiza em todo o mundo em defesa e promoção da vida. Nessas horas voltam à baila críticas como: A igreja, feita de homens celibatários que não têm filhos está distante da realidade das pessoas; não entende a dor das pessoas… Será preciso que nós padres e bispos tenhamos filhos para compreender o sofrimento das família? Creio que não! É urgente melhorar o diálogo, a proximidade com essas realidades. Situações como estas exigem uma postura diferente e mais silenciosa. Vai, visita, se apresenta, oferece sua palavra de conforto, mas sem publicidade. Depois, quando perguntarem o que a Igreja tem a dizer, a Igreja mostra o que fez pela família e basta.

Agora… se a Igreja tem condições de agir antes de tudo vir à tona, ofereça ajuda. Se só se pode dizer algo depois de tudo feito, ofereça apoio. Não há necessidade de manifestações públicas. Seguindo esse itinerário, se a Igreja partir da violência e do estupro terá condições menos dificuldade de salvar as duas crianças. Partindo do aborto, todas as duas morrem, de um jeito ou de outro. De dores e sofrimentos devem bastar os da família. Não nos cabe aumentá-los.

 

por Pe. Andrey Nicioli