Conhecendo um pouco o Evangelho de São Marcos

17 de janeiro de 2024

Este ano de 2024, vamos rezar aos domingos, principalmente no Tempo Comum, com o Evangelho de São Marcos. Importante ter algumas informações sobre o estilo e o modo como este segundo evangelista apresenta Jesus Cristo para nós.

Origem dos Evangelhos. Quando estudamos os Evangelhos, aprendemos que o Evangelho de São Marcos, historicamente, foi escrito próximo do ano 70 (uma data comum é 68 d.C.). Isto significa que desde o início da caminhada das comunidades cristãs, a principal preocupação foi de anunciar a Boa Nova realizada por Jesus Cristo. Como os apóstolos – principais e primeiras testemunhas – estavam presentes juntamente com outras pessoas, certamente, em relação às dúvidas e curiosidades sobre Jesus, bastava que se perguntasse a essas pessoas que conviveram com o Mestre Jesus. Podemos imaginar quanto foram preciosas as palavras desses discípulos e de Maria para conhecer ainda mais profundamente Jesus Cristo.

 Neste tempo de anúncio e vivência do Evangelho, temos a presença de São Paulo que deixou seu testemunho com suas cartas onde percebemos o zelo pastoral do apóstolo do Gentios, bem como os desafios e crises das primeiras comunidades.

Entre os anos 33 d.C. (início da caminhada da Igreja) e a escrita do primeiro Evangelho (São Marcos) pelos anos 68 d.C. foi forte o período do anúncio sobre quem era Jesus, o que Ele fez, seus milagres e os seus ensinamentos, é bem provável, que no decorrer dos anos, um “roteiro comum” foi ganhando preferência entre tudo que se contava sobre Jesus. Tal esquema geral sobre a vida de Jesus, percebemos, praticamente, nos quatro Evangelhos.

Na medida em que os anos foram se passando, as testemunhas oculares e as principais fontes sobre Jesus estavam terminando seus dias e alguns discípulos também passaram pelo martírio. Assim, viu-se por bem, reunir e escrever tudo que sabiam sobre Jesus. Dessa forma, nascem os Evangelhos que temos em nossas Bíblias.

Marcos teria escrito seu Evangelho antes da destruição de Jerusalém que aconteceu em 70 d.C. Antes desta data, sabemos, pela tradição, da morte de duas colunas fundamentais da fé cristã: São Pedro e São Paulo. Neste contexto, o autor resolve escrever sobre Jesus Cristo a uma comunidade que trazia características comuns a tantas outras comunidades no período do cristianismo nascente.

Marcos e os outros Evangelhos. Os Evangelhos de Mateus e Lucas foram escritos um pouco mais tarde do que Marcos. São situados em meados dos anos 80 d.C. Costuma-se afirmar que estes dois evangelistas se basearam ou teriam usado o esquema de São Marcos. Lendo os três escritos, percebemos que, de fato, Mateus e Lucas repetem quase tudo de Marcos e também acrescentaram outras passagens comuns entre eles e cada um, com relatos próprios.

Apesar das semelhanças nos relatos, cada evangelista deixou suas características próprias seja no vocabulário e no jeito (estilo) de redigir as passagens. O Evangelho de São João foi escrito mais tarde que Mateus e Lucas. O quarto evangelista preferiu escrever usando um estilo e uma narração dos fatos muito própria: aprofundando muitos aspectos da fé em Cristo. No entanto, percebe-se um mesmo esquema que perpassa os quatro Evangelhos.

Olhando o início do novo testamento, o primeiro Evangelho não é Marcos, mas de Mateus. Ao longo da organização dos escritos sobre Jesus (os Evangelhos), surgiu uma tradição que afirma que o primeiro escrito, ainda mais simples, teria sido de Mateus, mas escrito no aramaico. Os Evangelhos que temos em nossas Bíblias foram escritos originalmente em grego. O tal Evangelho em aramaico de Mateus teria sido, posteriormente, reescrito em grego acrescentando bem mais relatos que naquele mais antigo em aramaico. Assim, preservou-se a tradição que o primeiro escrito sobre Jesus teria sido por iniciativa de Mateus e dessa forma, o seu evangelho foi colocado antes de Marcos.

Esquema básico dos Evangelhos. Mencionamos que os Evangelhos possuem um esquema básico que foi se constituindo como fundamental no anúncio de Jesus Cristo e o Reino de Deus desde o início. O “primeiro anúncio” dos discípulos chamado de “querigma” tinha como centro a “Paixão, Morte e Ressurreição”, centro da nossa fé. Com o decorrer dos anos e com as primeiras comunidades cristãs vivendo esta nova fé em Cristo, foram também organizando a vida pública de Jesus, isto é, tudo o que Ele ensinou e fez a partir do Batismo. Assim, nasceu o esquema que vemos nos Evangelhos. Marcando o início da vida pública de Jesus, os Evangelhos narram o Batismo de Jesus por João Batista no rio Jordão. Resumindo o esquema que encontramos básico nos quatro Evangelhos:

Batismo – vida pública – Paixão, Morte e Ressurreição (querigma)

Mateus e Lucas escrevem para comunidades que tinham mais tempo de caminhada. Bem provável que para cristãos, muitos deles, que já cresceram em um ambiente de fé cristã com a conversão de seus pais. Por isso, temos nestes dois Evangelhos (Mt e Lc) mais respostas sobre Jesus, principalmente, sobre sua origem. Assim, temos os “Evangelhos da infância” de Jesus (Mt 1-2; Lc 1-2). São João escreve para outros cristãos com mais tempo de fé cristã, assim, ele preferiu aprofundar alguns aspectos da fé em Cristo a partir de algumas passagens da vida de Jesus. É próprio do quarto Evangelho uma profunda reflexão sobre a origem divina e eterna de Jesus representado pelo Verbo de Deus.

Podemos resumir esta organização das passagens da vida de Jesus da seguinte forma:

  Logos

(Eternidade do Verbo)

Infância de Jesus Vida pública

(Batismo até a ceia)

Querigma

(Paixão, Morte e Ressurreição)

Mateus   Mt 1-2 Mt 3,1 a 26,46 Mt 26,47 (prisão) a 28,20
Marcos     Mc 1,1 a 14,42 Mc 14,43 (prisão) a 16,20
Lucas   Lc 1-2 Lc 3,1 a 22,46 Lc 22,47 (prisão) a 24,53
João Jo 1,1-18   Jo 1,19 a 17,26 Jo 18,1 (prisão) a 21,25

Percebe-se que o conteúdo presente no Evangelho de São Marcos é o mais resumido em relação aos outros Evangelhos.

 O estudo dos Evangelhos costuma chamar os três primeiros Evangelhos (Mt, Mc e Lc) de “Sinóticos”, porque podem ser lidos um ao lado do outro. De fato, os Evangelhos de Mateus e Lucas utilizaram um esquema que está bem resumido em Marcos. Lendo Mt e Lc, parece que os dois evangelistas foram seguindo o roteiro presente em Mc e foram acrescentando muito do material em comum entre eles e material próprio, cada um, em seus Evangelhos.

Características do Evangelho de São Marcos. O autor não aparece e nem é mencionado no texto do Evangelho, no entanto, há uma tradição antiga que afirma ser o autor do Evangelho um tal “jovem nu” que sai correndo quando Jesus é preso (Mc 14,52). Mas, não se pode afirmar com certeza se tratar do autor do segundo Evangelho, São Marcos. Já no final do ano 100 d.C., apareceu uma tradição seguida até hoje de atribuir o Evangelho a Marcos, que se tem identificado com o João Marcos, parente de Barnabé e companheiro de Paulo, do qual narram os Atos dos Apóstolos e Paulo (cf. At 12,12.25; 15,37.39; Fm 24; Cl 4,10; 2Tm 4,11), e além disso se tem relacionado com a atividade de Pedro em Roma (cf. 1Pd 5,13).

Como Evangelho de São Marcos possui passagens com detalhes marcantes, costuma-se afirmar que o autor teria tido como fonte São Pedro, assim, ele teria convivido ou mesmo teria sido uma espécie de secretário do primeiro apóstolo escolhido por Jesus. Lembrando que Marcos não conviveu com o Jesus e nem fez parte do grupo apostólico inicial. Dessa forma, costuma-se dizer que o Evangelho de São Marcos seria a catequese que ele ouvia de São Pedro e depois, teria escrito tudo. No relato da Paixão, por exemplo, atribuíram-se às lembranças de Pedro as seguintes passagens que se caracterizam pela vivacidade da narrativa e a presença de minúcias impressionantes: 14,3-9.22-25.32-42.47-52.54.65.66-72; 15,2.6-14.16-20.25.27.31-33.38.40-47. É uma tradição que tem sua importância, mas não se pode afirmar categoricamente que foi dessa forma que nasceu o segundo Evangelho.

Todos os evangelistas escreveram para uma comunidade bem definida, por isso, cada um adaptou ou acrescentou detalhes em seus textos visando ajudar os seus leitores. Com São Marcos não foi diferente. O segundo evangelista deve ter escrito o seu Evangelho fora da terra de Israel para cristãos que não conheciam muitos detalhes da vida dos judeus e os seus costumes, por isso, São Marcos procura explicar os costumes judaicos (7,3-4; 14,12; 15,42), certas palavras aramaicas (3,17; 5,41; 7,11; 10,46; 11,34; 14,36; 15,32-34); expressões em latim, alusão ao direito e ao horário romano (10,12; 13,35); Marcos dá uma explicação das moedas hebraicas com a sua equivalência às moedas romanas (12,42) entre outros detalhes. Assim, pode-se afirmar que os leitores de Marcos não eram, em sua maioria, judeus e nem se encontravam na terra de Israel quando receberam o escrito de São Marcos.

Estilo do Evangelho de São Marcos. O segundo Evangelho possui um texto simples em relação a gramática grego (língua de origem do Evangelho), com um vocabulário comum, mas com termos da realidade que vivia a comunidade, por isso, usa palavras tiradas do uso militar romano, da cultura grega e da língua latina. O jeito de escrever em grego demonstra que o autor não tinha esta língua como sua desde a infância. É bem provável que falava em aramaico como judeus de nascença (era a língua mais comum entre os judeus) e depois escreveu seu Evangelho em grego.

O estilo de escrever de Marcos é popular e vivo, próprio da língua falada, que, apesar das incorreções gramaticais, sabe manter o interesse, como consequência do emprego de uma série de recursos que imprimem à narração um bom ritmo, como o uso frequente do presente histórico (151 vezes) e do estilo direto, servem para visualizar e fazer presente a ação diante do leitor. Por outra parte, sublinha as ideias por meio de pleonasmos [repetição de termos semelhantes: “subir pra cima”]; a repetição da mesma frase por diversos interlocutores (cf 2,5.7.9.10); os sinônimos em palavras e frases; a repetição de palavras, ou palavras da mesma raiz; a dupla negação (cf 5,3); a dupla pergunta (cf 1,24) etc. Igualmente, as cláusulas explicativas (cf 5,42b), a apresentação de detalhes (cf 5,43b) e dos sentimentos dos personagens (cf 3,4s) servem para manter vivo o interesse e conseguir descrições concretas. Nos relatos se usa, às vezes, a inclusão ou relato marcado pela mesma ideia que se repete ao princípio e ao final (13,35-37), outras vezes uma pergunta essencial como introdução; um coro como conclusão e a divisão ternária do relato (14,32-42; 14,66-72). Tudo isto sugere que estamos diante de uma obra escrita, não tanto para ser lida, quanto para ser ouvida.

Quando comparamos algumas passagens de Marcos com os outros dois evangelistas (Mateus e Lucas), percebemos como o segundo evangelista aprecia narrar com mais detalhes o drama vivido pelas pessoas como nas passagens: possesso da Decápole – Mc 5,1-20 (20 versículos) e Mt 8,28-34 (4 versículos); Mulher com perda de sangue e o reavivamento da filha de Jairo – Mc 5,21-43 (22 versículos) e Mt 9,18-26 (8 versículos).

Os Evangelhos sinóticos possuem um momento marcante que determina o centro da vida pública de Jesus. Depois do início da missão de Jesus, tudo caminha para o momento central quando Jesus pergunta quem Ele é para as pessoas (Mt 16,13-20; Mc 8,27-30 e Lc 9,18-21). Pedro responde com uma profissão de fé significativa, mas ainda incompleta. A partir deste momento, Jesus começa a preparar o grupo para os momentos finais em Jerusalém e para a sua Paixão, Morte e Ressurreição.

Aos domingos, teremos sempre textos selecionados que vão desde o início da vida pública de Jesus até os momentos decisivos quando Ele se encontrava em Jerusalém antes de celebrar a Ceia Eucarística com seus discípulos.

Como os textos escolhidos nem sempre são em sequência um do outro, é interessante ler as passagens evangélicas que não serão lidas que estão entre aquelas proclamadas aos domingos em nossas celebrações.

Uma boa caminhada de reflexão a todos com este riquíssimo texto, simples, mas profundamente humano (em relação aqueles que se encontram com Jesus) e divino, pois mostra a grande misericórdia de Jesus para com toda a humanidade.

Imagem destacada: Beato Angélico, detalhe com São Marcos Evangelista, Capela Nicolina. Palácios Vaticanos ©Musei Vaticani