Domingo da Palavra de Deus nos motiva à “Primazia da Palavra”

23 de janeiro de 2020

O Domingo da Palavra de Deus, instituído pelo Papa Francisco, em sua Carta Apostólica sob forma de MOTU PROPRIO, APERUIT ILLIS, de 30 de setembro de 2019, reassume todo um percurso de maturação que a Igreja fez nos últimos séculos, tendo como expressão a Constituição Dogmática Dei Verbum, do Concílio Vaticano II, publicado em 18 de novembro de 1965.

Como bem sublinha o Papa Francisco, ao concluir sua Carta Apostólica, “Possa o domingo dedicado à Palavra fazer crescer no povo de Deus uma religiosa e assídua familiaridade com as sagradas Escrituras, tal como ensinava o autor sagrado já nos tempos antigos: ‘esta palavra «está muito perto de ti, na tua boca e no teu coração, para a praticares’ (Dt 30, 14).”

A assídua familiaridade com o Santa Palavra não é um acréscimo virtuoso imposto à vida espiritual ou um comportamento a ser instalado com finalidade sobrenatural. Mas é, antes de tudo e acima de tudo, a substância e a identidade de cada cristã e de cada cristão. Com a inserção temática na Liturgia do III Domingo do Tempo Comum, a Palavra de Deus é evidenciada em modo celebrativo/comunitário, em todo o orbe cristão, com abertura e acolhimento às diversas igrejas, também as provenientes da Reforma do Século XVI e com toda a Ortodoxia. Abre-se também ao já percorrido caminho de Dialogo Hebraico – Cristão.

Essa celebração, fruto de muita reflexão do Magistério Universal (Pastores, ministros, teólogos e todo o Povo de Deus), é uma manifestação propícia, com o fim de fortalecer e recuperar a identidade cristã, que se consolida no processo de “familiarização” com a Palavra de Deus. E para isso, a dimensão celebrativa só pode ser frutuosa se for o cume e fonte de uma vida “frequentada na Sagrada Escritura”, cuja “Sacramentalidade” (Bento XVI, Verbum Domini, 56) nos motiva à uma “Primazia da Palavra”, qualquer que seja nosso status, nossas escolhas e nosso cotidiano.

A história foi testemunha de muitos desacertos e desentendimentos entre os fiéis. Muitas vezes, o Texto Sagrado, foi instrumentalizado e reduzido, seja para fundamentar as ideologias, seja também para mera apologética. Também hoje nos confrontamos com uma “utilização” supersticiosa e moralista da Santa Palavra, subordinando-a às fantasias individuais e coletivas, e até mesmo – com triste e indignada constatação – com o objetivo de domínio político, econômico e social.

Quando a vida não é alicerçada, alimentada e iluminada pela Palavra, cuja “Primazia” é fundamental, incorremos nos mesmos erros que a história ainda nos narra, e que se encontram presentes em nossa sociedade. Isso alerta para a distância em que podemos estar daquela nossa verdadeira identidade, que se realiza e se concretiza justamente na “assiduidade” à Sagrada Escritura. Por isso, essa jornada é um forte convite à Lectio Divina, que no Brasil, foi nominada como “Leitura Orante da Bíblia”, e muito frutificou nas Comunidades Eclesiais de Base.

A “Lectio” não é apenas um exercício de piedade, ou “momento de oração” para obter graças, curas, etc … Também não é tempo no qual o leitor busca seus interesses pessoais e tenta encontrá-los na Bíblia. Antes de tudo, a “Lectio” é uma decisão entre duas pessoas que fizeram uma “Aliança”, um “Pacto de Amor”: Deus e o homem. E nessa leitura, homem e Deus se encontram no percurso escolhido em plena liberdade por ambos, em que a Palavra proferida e a Palavra escutada, vai assumindo carne e presença em uma nova historia, a “Historia da Salvação”.

Mesmo desenvolvida em um contexto monástico, a Lectio Divina não é privilégio de monges e monjas. Na experiência de Fé, o cristão que frequenta a Palavra, vai exprimindo a Imagem de Deus que lhe foi impressa no Batismo, pois, quando duas pessoas se amam e se “encontram” nesse dialogo de ternura – próprio da leitura orante – inexoravelmente se adquire aquela palavra de conhecimento experiencial, que Platão (400 a.C) chamava de syggeneia, isto é, conaturalidade ou consanguinidade, pois somente os semelhante conhece o semelhante. É esse o fruto da Lectio! Pela continua frequentação á Palavra Santa, nós nos tornamos conaturais de Deus, do mesmo modo que Ele se conaturalizou conosco.

O “Grande” Papa e Doutor São Gregório (séc. VI), em seus escritos, nos permite confirmar essa realidade com uma máxima de muito valor para os que decidiram percorrer o caminho fundamental da Lectio: “Divina eloquia legente crescunt”. “A Palavra de Deus cresce junto com quem dela se aproxima”. Aquele Jesus que se esconde e se revela no texto bíblico, é o “Grande Amigo”, melhor, o “Noivo” que vai desvelando gradualmente à sua amada os seus mais ricos tesouros, impulsionando-a delicadamente, no pleno respeito da sua liberdade, a aderir à sua proposta de amor.

O “Domingo da Palavra de Deus”, celebrado pela primeira vez em nossas comunidades religiosas e paroquiais, quer ser sinal e apelo para redescobrirmos nossa identidade de discípulos e discípulas de Jesus, homens e mulheres que escolheram o “Primado” da Palavra de Deus, que é sempre transformadora, restauradora e vivificadora de cada ser humano e de toda a sociedade “Quem se alimenta dia a dia da Palavra de Deus torna-se, como Jesus, contemporâneo das pessoas que encontra; não se sente tentado a cair em nostalgias estéreis do passado, nem em utopias desencarnadas relativas ao futuro.” (APERUIT ILLIS, Papa FRANCISCO, n.12).

 

por Vatican News