O divino na complexidade humana

1 de outubro de 2024

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Os textos bíblicos são frutos de um complexo processo redacional que envolveu diferentes autores e destinatários, situados em épocas e contextos específicos, com interesses e estilos literários peculiares. Sendo assim, aproximar-se desses elementos pré-textuais que influenciaram a construção do conteúdo de um livro, ao mesmo tempo em que auxiliam na sua compreensão,  é fundamental para uma interpretação profunda e pertinente da mensagem revelada por Deus ao ser humano. O estudo bíblico requer do teólogo uma postura investigativa de curiosidade histórico-cultural que possibilita sua aproximação do ambiente geográfico, econômico, político, moral e religioso que dá sentido para o enredo de cada passagem. Essa postura investigativa permite, inclusive, que o leitor da Sagrada Escritura estabeleça as convergências e divergências entre a realidade originária do texto e os desafios contemporâneos para os quais ele se destina como luz, uma vez que a palavra de Deus é atual, “é para sempre, ela está firmada no céu” (Sl 119,89).

Todo texto é, na verdade, um instrumento de fala por meio do qual alguém emite uma mensagem para um receptor num dado ambiente, por isso é relevante privilegiar no estudo de uma perícope bíblica a busca pela autoria, pelos destinatários e pelo contexto. Em primeira instância, é o próprio Deus quem pronuncia seu “Eu sou Aquele que é” (Ex 3,14) em todos os versos da Escritura, tratando de se revelar em cada palavra. Como não produziu a Bíblia solitariamente, Deus falou através de homens e mulheres ao longo da história, apropriando-se da linguagem e da cultura humana para se fazer entender por seus interlocutores. Assim, os escritores bíblicos, isto é, os hagiógrafos, são sujeitos individuais e/ou comunitários que possuem fisionomias que devem ser decifradas pela hermenêutica bíblica. O texto está impregnado de características próprias da personalidade de quem o escreveu e/ou das características da comunidade que o redigiu. É prudente usar a expressão “e/ou” porque muitos textos bíblicos não foram compostos por um autor(a), como os títulos sugerem; a grande maioria dos livros revelados, embora nasça da catequese de um patriarca, profeta ou apóstolo, trata-se de um conjunto de obras escritas comunitariamente, observando a primazia cristã da vida eclesial sobre a vida pessoal.

Mesmo havendo fragmentos autenticamente redigidos por Moisés no Pentateuco e cartas integralmente atribuídas a Paulo no Segundo Testamento, por exemplo, há que se considerar a existência de camadas redacionais na maior parte dos textos bíblicos. Essas camadas redacionais sugerem que a versão final de um livro é consequência de inúmeras revisões que comunidades realizaram da catequese que receberam por parte de alguma figura importante da história do povo de Deus. A título de ilustração, o livro de Isaías, embora se origine na pregação do profeta enquanto sujeito histórico que catequizou no Templo de Jerusalém por quarenta anos, a partir de 740 a.C., é formado por três partes que revelam autores diferentes, mostrando que pelo menos três comunidades reinterpretaram, em contextos específicos, num período que se estende por 500 anos, os ensinamentos de Isaías: os capítulos 1-39 compõem o Proto-Isaías (o primeiro livro, chamado “das denúncias”), escrito antes do cativeiro da babilônia (587-538 a.C.); os capítulos 40-55 formam o Deutero-Isaías (o segundo livro, chamado “da consolação”), redigido durante o exílio; e os capítulos 56-66 são o Trito-Isaías (o terceiro livro, chamado “da esperança”), produzido após o cativeiro.

Além disso, há livros pseudepígrafos na Bíblia, ou seja, livros cuja autoria foi atribuída a uma figura notável para que o texto tivesse maior aceitação e circulação entre o povo: o evangelho de Mateus, por exemplo, comumente atribuído ao apóstolo que foi chamado por Jesus enquanto trabalhava na coletoria de impostos (cf. Mt 9,9), originou-se da catequese desse homem, mas não pode ter sido escrito por ele; sendo cobrador, Mateus não tinha os conhecimentos necessários para redigir um texto com tantas citações do Primeiro Testamento e tamanha propriedade no que diz respeito à Lei mosaica, uma vez que trabalhava diariamente com números e não com as letras. Dessa maneira, a hipótese é que o evangelho tenha sido escrito por um rabino convertido ao cristianismo que, para atingir seu público, isto é, a comunidade judaica, publicou o texto em nome do apóstolo que o cativou com seu testemunho e pregação (cf. Mt 13,52).

Entender quem escreveu o texto e quais são seus leitores originários é fundamental para que a mensagem, antes de ser atualizada, seja compreendida em seu contexto primitivo. Para exemplificar isso, tomem-se os evangelhos: a teologia de Marcos deixa claro que ele escreveu, entre os anos 60-70, para uma comunidade de cristãos romanos a fim de convencê-los que Jesus é o Cristo (cf. Mc 1,1), por isso a confissão de que “verdadeiramente este homem era filho de Deus” (Mc 15,39) é posta na boca de um centurião que era chefe do exército de Roma; a mensagem de Mateus é endereçada, entre os anos 70-80, a cristãos vindos do Judaísmo, por isso o autor apresenta Jesus como o novo e definitivo Moisés, que possui raízes semitas (cf. Mt 1) e entrega ao povo mandamentos inéditos, as bem-aventuranças (cf. Mt 5,3-11); a catequese de Lucas é destinada aos pagãos, entre os anos 70-80, uma vez que ele era gentio e anunciava que a salvação em Cristo é universal, é para o pobre (cf. Lc 2,8), para o romano (cf. Lc 7,1-10), para as mulheres (cf. Lc 8,1-3), para os samaritanos (cf. 10,29-37) etc; já a pregação de João visava atingir, entre os anos 90-100, os cristãos gregos que, educados segundo a filosofia clássica, precisavam corrigir desvios doutrinários e identificar Jesus com a sabedoria que tanto buscavam racionalmente, mas que só encontrariam na pessoa e na obra do Filho de Deus encarnado (cf. Jo 1,14).

Essa complexidade de elementos (autoria, destinatários, época e interesse) que pré-textualizam o gênero literário chamado evangelho, encontra-se em todos os demais livros bíblicos, fazendo surgir diferentes tipologias textuais. Como uma grande biblioteca, a Sagrada Escritura possui livros narrativos (cf. Gn e At), legislativos (cf. Lv e Dt), poéticos (cf. Sl), dramatúrgicos (cf. Est e Tb), sapienciais (cf. Sb e Prov), apocalípticos (cf. Dn e Ap), cronológicos (cf. Nm), proféticos (cf. Am e Os), epistolares (cf. Rm e Pd) enfim. A existência de múltiplos gêneros de textos na Bíblia é mais uma evidência de que a revelação de Deus se deu no emaranhado cultural do ser humano, de forma que identificar a classificação literária de um texto é importante para extrair sua intencionalidade e assimilar, como profundidade, sua teologia. Todos os elementos pré-textuais apresentados são para a revelação aquilo que a encarnação é para o Filho de Deus: assim como a Palavra Eterna do Pai assumiu a totalidade da natureza humana, com exceção do pecado, a mensagem divina assimilou a complexidade comunicativa do homem, aceitando ser transmitida por autores diversos, para destinatários específicos, em contextos e tempos diferentes, através de múltiplas tipologias literárias, sem, com isso, perder sua universalidade (cf. Sl 119,89) e sua unidade que é garantida pela verdade da Palavra (cf. Sl 119,160).

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