O divino no espaço humano

6 de novembro de 2024

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Sendo Deus, por essência, um espírito puro (cf. Jo 4,24) que não possui em si matéria nem depende daquilo que é material, uma vez que não está condicionado pelas categorias de espaço e de tempo próprias do universo criado, a Bíblia narra o evento extraordinário da revelação divina que ocorreu dentro das limitações físicas e temporais da humanidade. Ele se encontra na origem de tudo o que é natural e temporal, conforme assegura a narrativa teológica de Gênesis 1–2, sem com isso ser material ou limitar-se à história porque Nele “não há variação nem sombra de mudança” (Tg 1,17). Eterno, o Criador preexiste em relação a tudo o que foi criado e não conhece princípio, meio e fim, de forma que Ele é “Aquele que é” (Ex 3,14) e chamou à existência todas as coisas e o próprio ser humano do nada (ex nihilo). Transcendendo o mundo e a história, Deus é o único capaz de criar, ou seja, de fazer existir a partir do nada uma natureza diferente da sua: sendo incorpóreo, criou a matéria; sendo atemporal, criou o tempo; sendo imutável, criou o que é passível de mudança; sendo eterno, criou o provisório; sendo infinito, criou o finito; sendo necessário, criou o contingente. Foi Ele quem fez o tempo e o espaço: “eles hão de passar, mas vós [Senhor] permaneceis; tal como um vestido, eles se vão gastando […]. Vós, porém, sois sempre o mesmo e os vossos anos não tem fim” (Sl 102,27-28).

Entender, portanto, a geografia que emoldura a história da salvação, protagonizada por Deus e narrada na Sagrada Escritura, é importante para que os textos bíblicos sejam lidos e interpretados dentro dos espaços que explicam os contextos e alargam as mensagens que transmitem. O macrocenário geográfico em que surgiu e no qual se desenvolveu o povo de Deus é a região chamada de Crescente Fértil, que se estende do Egito, no extremo norte da África, ao Golfo Pérsico, no continente asiático. Esse local, cuja representação cartográfica lembra a silhueta de uma lua, abundante em água e favorável à agricultura e à pecuária, foi o ambiente favorável para a sedentarização dos grupos nômades primitivos e, consequentemente, para o aparecimento das primeiras civilizações humanas. No centro do Crescente Fértil, banhada pelos rios Eufrates e Tigre, encontra-se a Mesopotâmia (do grego, Μεσοποταμία, significa “entre rios”): nela se desenvolveram povos como os sumérios, os babilônios (amoritas e caldeus), os acádios e os assírios. É válido lembrar que Abraão era natural da cidade babilônica de Ur (cf. Gn 11,28), no atual Iraque, e foi chamado por Deus para deixar sua terra e migrar para Canaã (cf. Gn 12,1), uma faixa de terra que fica entre a Mesopotâmia e o Egito, na porção oeste do Crescente Fértil.

Canaã é o primeiro título dado à região que atualmente compreende países como Israel, Jordânia e Síria (cf. Nm 34,1-15), na qual desenvolveram-se povos arcaicos como fenícios, persas e hebreus. Sendo o nome de um dos filhos de Cam e, portanto, um dos netos de Noé (cf. Gn 9,22), Canaã passou a designar os territórios onde viveram os descendentes de Sem, outro filho de Noé (cf. 9,18). Os hebreus, descendentes de Sem e, portanto, semitas, povoaram o território de Canaã a partir da migração de Abraão (cf. Gn 11,10-32); foram designados como hebreus, segundo o significado do verbo ivrim (do hebraico, עברים quer dizer atravessar), todos os filhos de Héber (cf. Gn 10,21) que atravessaram o rio Eufrates, de forma que hebreu é uma designação dada pelos mesopotâmicos àqueles que viviam em Canaã (cf. Gn 10,30). O povo de Deus, assim, desenvolveu-se em torno, mas especialmente à oeste, do rio Jordão que, com cerca de 200 km de extensão, nasce no monte Hérmon (entre a Síria e o Líbano), passa pelo lago de Genesaré (cf. Nm 34,11 / Js 13,27, mais tarde chamado de mar da Galileia, o lago tinha o nome de Kinneretכִּנֶּרֶת – porque seu formato lembra uma harpa, que no hebraico se diz kinnor נֶבֶל) e deságua no mar Morto (cf. Nm 34,12).

No Primeiro Testamento, a terra de Canaã recebeu o nome do bisneto de Abraão, Israel. Filho de Isaac, Jacó recebeu de Deus o nome de Israel (cf. Gn 35,10, יִשְׂרָאֵל), que passou a designar não só o povo, formado por 12 tribos, com o qual o Senhor fez uma aliança, mas também o território em que viviam. Durante o período monárquico, após a morte do rei Salomão (cf. Cr 9,29-31) e a divisão do território dos hebreus em duas partes (cf. 1Rs 12), o norte foi chamado de reino de Israel, com sede na cidade de Samaria, e o sul se tornou o reino de Judá, cuja capital era Jerusalém. Com a dominação dos hebreus pelos romanos a partir de 63 a.C., sob a liderança do general Pompeu (106-48 a.C.), toda a região no entorno do rio Jordão foi chamada de Palestina, que deriva do termo Philistia (usado pelos gregos para designar, desde o século XII a.C., a faixa de terra que fica entre o rio Jordão e o mar Mediterrâneo). Para viabilizar o controle dessa região periférica do Império que Roma formou a partir de 27 a.C., colonizando vastos territórios ao longo de toda a costa do mar Mediterrâneo, os romanos dividiram a Palestina em regiões administrativas que foram colocadas sob a autoridade de reis e procuradores.

No Segundo Testamento, portanto, as terras palestinenses à oeste do rio Jordão estavam divididas em Galileia (próxima ao lago de Genesaré ou de Tiberíades, em torno do qual ficam as cidades de Nazaré, Caná, Tiberíades, Genesaré, Naim, Cafarnaum, Corazin e Betsaida), Samaria (onde ficam Sicar e Cesareia Marítima), Judeia (próxima ao mar Morto, onde ficam Belém, Jerusalém, Betânia, Emaús e Jericó) e Idumeia; à leste, o território foi separado em Província Síria (onde ficam Tiro e Damasco), Traconites (onde fica Cesareia de Felipe), Decápolis (onde ficam as cidades de Gadara e Gerasa), Pereia e Nabateia. No que diz respeito à vida de Jesus, é interessante ressaltar que os fatos narrados pelos evangelistas aconteceram, em sua grande maioria, no corredor oeste da Palestina, entre o rio Jordão e o mar Mediterrâneo: Cristo, o homem de Nazaré (cf. Lc 4,14-16), passou sua vida peregrinando da Galileia (norte da Palestina), atravessando a Samaria, em direção à Judeia (sul da Palestina) (cf. Lc 9,51-56), e vice-versa. Seu ministério, vivido publicamente nos três anos anteriores a sua morte e ressurreição, consistiu em caminhar em volta do mar da Galileia, que na verdade é um lago de água doce com cerca de 20 km de extensão, também chamado de mar de Tiberíades (cf. Jo 6,1), pregando e realizando milagres para estabelecer entre os homens o Reino de Deus (cf. Mt 4,17).

Aproximar-se, desta forma, dos elementos geográficos que emolduram a revelação divina é importante para que as passagens bíblicas, tanto as do Primeiro quanto as do Segundo Testamento, ganhem fundamentação imagética. Manter diante dos olhos, como uma lupa que amplia os detalhes de uma perícope, os traços cartográficos que ilustram a ação de Deus na história humana é relevante para que as referências geográficas presentes na Sagrada Escritura, tais como nomes de regiões, cidades, rios e lagos, façam sentido ao leitor. É certo, no entanto, que apesar de conter e se apropriar de elementos geográficos para narrar uma experiência de fé, a Bíblia não é um compêndio de Geografia, portando limites e até erros no que se refere a localizações e coordenadas espaciais; e, não raras vezes, os hagiógrafos usaram conhecimentos geográficos para anunciar mensagens teológicas, de sorte que nem sempre, numa narrativa evangélica, por exemplo, a citação de uma determinada região é histórica, podendo ser um recurso catequético para transmitir uma verdade de fé a partir do significado daquele local para a cultura judaico-cristã ou para a história universal.

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