Primeiro Testamento: o divino na história de Israel

6 de fevereiro de 2025

Os primeiros 46 livros da Bíblia cristã são, na verdade, um empréstimo realizado pelo cristianismo daquelas obras que compõem a Bíblia Judaica, chamada de Tanakh. Ao considerar este conjunto de livros como a preparação do povo de Deus para a vinda do Messias, os cristãos o leem e o interpretam à luz da encarnação, vida, morte e ressurreição de Jesus, de sorte que, tudo o que está contido nessas obras, profetiza a chegada do Filho de Deus: por esse motivo, o cânon judaico preservado na Bíblia cristã é o Primeiro Testamento, já que narra os eventos históricos referentes à primeira aliança que Deus fez com a humanidade através do povo de Israel. Aproximar-se da história de Israel, portanto, é essencial não só para entender a cronologia dos eventos descritos nos 46 livros do Primeiro Testamento, mas, sobretudo, para compreender de que modo Deus providenciou historicamente as condições para que o Verbo Divino se fizesse homem (cf. Jo 1,14) e levasse a termo o plano salvífico de amor do Pai.

O aparecimento de Israel enquanto nação, no ambiente dos povos que habitavam a região do Crescente Fértil, desde pelo menos 5000 anos a.C., se confunde com o surgimento e com o desenvolvimento da própria religião judaica, de forma que se pode estabelecer cinco períodos para o estudo da história do Primeiro Testamento: 1) o período dos patriarcas, 2) o exílio egípcio, 3) o período dos juízes, 4) o período da monarquia unida e 5) o período da monarquia dividida. Há que se observar o fato de que o Judaísmo irrompe no contexto das religiões politeístas mantidas entre as civilizações antigas, sejam elas mesopotâmicas (sumérios e babilônios), palestinas (persas e fenícios) ou clássicas (egípcios, gregos e romanos). Dessa forma, o drama que enreda todos os livros do Primeiro Testamento é o da fidelidade de Israel ao Deus Único (cf. Dt 6,4), uma vez que a predominância do politeísmo nas culturas vizinhas e o lento processo de formação de uma identidade monoteísta interna, fez com que os hebreus cultuassem a outros deuses e/ou, não desprezando a existência de um panteão, chamassem Javé de “Deus dos deuses” (cf. Dt 10,17; Sl 136,2; Js 22,22).

A construção da consciência monoteísta que deu origem ao povo de Israel começou com a convocação que Javé, a quem os cristãos identificam como sendo o pai de Jesus, fez a Abraão para que o adorasse como Deus Único (cf. Gn 12). Migrando da Babilônia, de onde era natural, para Canaã, Abraão deu origem aos hebreus enquanto nação escolhida para testemunhar a revelação divina, a partir da miscigenação de povos que se fixaram na Mesopotâmia, na Síria e na Palestina por volta de 2000 a.C., como os amorreus e os arameus. Canaã, a terra prometida por Deus ao patriarca do Judaísmo, era o testemunho material de sua aliança monoteísta com Abraão e com a sua descendência; assim, no contexto da corrida expansionista, que levava as civilizações daquela região a guerrearem para conquistar territórios e ampliar seus domínios político-econômicos, Javé dá a Israel uma terra fértil, onde corre leite e mel (cf. Ex 33,3). A formação da nação israelita na região cananeia, a partir do êxodo abraâmico, representa o nascimento do monoteísmo javista naquela terra doada, que é o sinal sacramental da fidelidade do Deus Único ao povo que devia prestar-lhe um culto exclusivo: “tomar-vos-ei por meu povo, e serei o vosso Deus. E vós sabereis que eu sou Javé vosso Deus” (Ex 6,7).

Dentre os oito filhos que Abraão teve com três mulheres diferentes (cf. Gn 16,1-4; 21,1-3; 25,1-6), destacam-se o primogênito Ismael, de cuja descendência surgiram os povos árabes (cf. Gn 25,12-18), e Isaac, o filho prometido por Deus para garantir o crescimento da nação judaica (cf. Gn 15,4-5). Isaac gerou Esaú, o filho que vendeu o direito de primogenitura para o seu irmão Jacó (cf. Gn 25,29-34), que, tendo seu nome trocado por Deus para Israel (ישראל, cf. Gn 35,10), cujo significado em hebraico é “homem que luta com Deus” (cf. Gn 32,23-33), teve doze filhos (cf. 1Cr 2,1), os pais das tribos de Israel. Organizando-se politicamente como uma confederação (cf. Gn 49,1-28), as doze tribos eram chefiadas militar e religiosamente cada qual por um juiz  (cf. Dt 16,18). Este período inicial da história de Israel, que se estende do chamamento de Abraão à consolidação das doze tribos sob a guia dos juízes, é chamado de patriarcal.

Provavelmente em 1850 a.C., teve início o período do exílio, quando, fugindo da fome que assolou Canaã graças a uma estiagem intensa, os hebreus deslocaram-se voluntariamente para o extremo nordeste da África (cf. Ex 1,1-7). Escravizado pelo faraó num dado momento de sua permanência no Egito (cf. Ex 1,8-15), o povo de Israel passou 400 anos em terra estrangeira: parte desses anos foram vividos em liberdade, e a maior parcela deles, como prisioneiro. Enquanto sofriam, Deus suscitou do meio dos hebreus um homem para livrá-los da servidão imposta pelo monarca egípcio: Moisés (cf. Ex 2). Por volta de 1450 a.C., sob a guia mosaica, os hebreus saíram do Egito (cf. Ex 13,17): eles atravessaram o Mar Vermelho a pé enxuto (cf. Ex 14,15-31), fixaram-se no deserto que fica junto ao Monte Sinai (cf. Ex 19,1), receberam o decálogo (cf. Ex 20,1-21), adoraram o bezerro de ouro (cf. Ex 32,1-6) e vagaram quarenta anos pelo deserto (cf. Dt 8,2), para que uma segunda geração de hebreus, nascida durante esse tempo, e não aquela primeira que cultuou o bezerro de ouro como divindade, pudesse entrar em Canaã (cf. Nm 14,20-38).

Por volta de 1400 a.C., com a retomada de Canaã pela segunda geração que peregrinou no deserto, liderada por Josué (cf. Js), uma vez que Moisés já havia morrido, (re)começa o período dos juízes. Nesse terceiro período da história de Israel, a confederação das doze tribos que se reorganizou na terra prometida, vivendo como uma teocracia na qual Deus governava o povo através de seus representantes político-religiosos, foi ameaçada pelo avanço dos “povos do mar”. A partir de 1200 a.C., os filisteus, como ficaram conhecidos esses povos que pretenderam dominar as nações que habitavam a região costeira do Mar Mediterrâneo, invadiram a Palestina, incentivando a coalizão das tribos de Israel em favor da adoção da monarquia como forma de governo do povo de Deus. Por intermédio do juiz Samuel (cf. Sm 8,1-6), Javé, contra sua vontade (cf. Sm 8,7-9), concedeu ao povo um rei, dando início ao período da monarquia unida em 1050 a.C. (cf. 1Sm 11 a 2Cr 9). Sob as regências de Saul (cf. 1Sm 10), Davi (cf. 2Sm 5,4) e Salomão (1Rs 11,42), Israel se consolidou como reino político, ao fortalecer a dinastia davídica no trono; como potência econômica, dominando os povos vizinhos na região da Transjordânia; e como povo religioso, ao erguer o primeiro Templo em Jerusalém, sua capital  (cf. 1Rs 6–8).

A apostasia (cf. 1Rs 11,1-13) e a morte salomônicas (cf. 2Cr 29-31) colaboraram para que ocorresse o cisma da monarquia israelense: Roboão e Jeroboão, filhos de Salomão (cf. 1Rs 12,1-2), separaram o poder político que mantinha as doze tribos submissas a um monarca, inaugurando o último período da história do Primeiro Testamento a partir de 933 a.C.: a monarquia dividida (cf. 1Rs 12 a 2Cr 36). Dez tribos, as mais ricas e povoadas, formaram o Reino do Norte, também chamado de Reino de Israel, cuja capital era a Samaria, sob o governo inicial de Jeroboão, e foi destruído pelo império assírio em 722 a.C. (cf. Jr 1,14-15). As tribos de Judá e Benjamim, as mais pobres, formaram o Reino do Sul, também chamado de Reino de Judá, cuja capital era Jerusalém, sob o governo inicial de Roboão, e foi dominado pelo império babilônio em 586 a.C. (cf. Jr 50,25), quando o primeiro Templo de Jerusalém fora destruído. Para denunciar as realidades contrárias à fidelidade monoteísta e para garantir a integridade da identidade religiosa do seu povo que estava politicamente dividido, Javé suscitou profetas em ambos os reinos. Sem a governança divina direta que havia antes do estabelecimento da monarquia, os profetas eram os portadores dos oráculos de Deus para Israel, que na monarquia dividida “vive como um rebanho sem pastor” (1Rs 22,17).

Em 539 a.C., a Babilônia foi derrotada pelo império persa, liderado pelo rei Ciro (cf. 2Cr 36,22-23; Es 1), que libertou o povo de Judá e permitiu sua repatriação em Israel sob a guia política dos governadores Zorobabel (cf. Ag 2,21), responsável pela construção do segundo Templo de Jerusalém (cf. Es 5-6), e Neemias (cf. Ne 1), e à luz da atuação religiosa do sacerdote Esdras (cf. Ne 8). Deste grupo de hebreus repatriados, chamado de “pequeno resto de Israel” (cf. Is 10,20) e composto pelos sobreviventes do extinto Reino de Judá, é que nascerá Jesus, o Cristo. Antes, porém, da encarnação do Verbo Eterno, o povo que regressou à terra prometida experimentou a dominação da Macedônia, a partir de 333 a.C.; com a morte de Alexandre Magno, em 323 a.C., o povo de Deus sofreu as consequências da disputa que se estabeleceu entre os sucessores do rei macedônico pelo território de Israel (323-167 a.C.): os lágidas, que governavam o Egito, e os selêucidas, que dominaram a Síria. Graças à revolta dos macabeus (167-160 a.C.), uma guerrilha judaica, Israel se tornou independente até quando foi finalmente dominado pelo general Pompeu, em 63 a.C., durante as campanhas militares de expansionismo romano, depois das quais, em 37 a.C., o grande Herodes foi nomeado por Roma como rei da terra dos judeus, a Judeia conforme passaram a chamá-la e onde “o Verbo se fez carne” (Jo 1,14).Primeiro Testamento: o divino na história de Israel

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