Versões do divino
A Bíblia é uma extensa obra que, nascendo da intenção divina de revelar o Eterno ao humano, foi escrita, revisada, ampliada e transmitida ao longo de séculos, por diferentes tradições religiosas e culturais. O processo redacional dos textos sagrados é complexo e lento, e a obra final que se encontra canonizada como Palavra de Deus para a salvação humana, dividida em blocos temáticos (pentateuco, livros históricos, livros sapienciais etc) e didaticamente organizada em capítulos e versículos, é fruto do labor teológico de muitas e diferentes comunidades e pessoas que viveram em contextos e com interesses específicos. Os livros bíblicos, portanto, compõem uma literatura heterogênea, comportando uma grande diversidade de gêneros textuais (narrativas, crônicas, poesias, novelas etc), de períodos históricos e de níveis culturais, muito embora todos contenham a seguinte e homogênea mensagem: “Cristo morreu pelos nossos pecados (…); ele foi sepultado e, no terceiro dia, foi ressuscitado” (1Cor 15,3-4).
Segundo os estudos bíblicos modernos, a produção literária do Primeiro Testamento começou enquanto o rei Salomão reinou sobre o povo de Israel (970-931) e terminou cerca de 50 anos antes da encarnação da Palavra Eterna (cf. Jo 1,14), ao passo que os livros do Segundo Testamento foram escritos, muito provavelmente, entre os anos 50 e 100 d.C.. Essa milenar jornada redacional, que teve início com a transmissão oral da revelação divina e culminou na materialização da mensagem salvífica em tábuas de argila cozida, papiros e pergaminhos, produziu três importantes versões da Bíblia que serviram e servem de base para as várias traduções que foram e ainda são realizadas dos textos divinamente inspirados: a Tanakh hebraica, a Septuaginta grega e a Vulgata latina. Antes, porém, de conhecer cada uma delas, é importante reforçar a distinção entre versões e traduções: as versões são obras arcaicas que nasceram da reunião dos códices, ou seja, das cópias mais antigas da Bíblia, escritas nas línguas originais dos hagiógrafos (hebraico, aramaico e grego) ou na língua oficial do cristianismo romano (latim); já as traduções são transposições dos textos primitivos para línguas modernas como o português, por exemplo.
O primeiro registro da revelação divina foi composto pela tradição judaica, sendo conhecido como Tanakh – תַּנַ”ךְ – e constituindo a Bíblia hebraica, que mais tarde foi assimilada pelos cristãos como o Primeiro Testamento, isto é, como a preparação para a vinda do Messias Jesus, o filho que foi profetizado para Israel como príncipe da paz (cf. Is 9,6). A palavra Tanakh é um acróstico formado pelas letras iniciais dos três conjuntos de livros que compõem a Bíblia hebraica: T de Torah (תּוֹרָה significa instrução e é o conjunto dos cinco primeiros livros bíblicos), N de Neviim (נביאים significa profetas e é o conjunto de livros que compreendem textos proféticos e históricos) e K de Ketuvim (כתובים significa escritos e é o conjunto de livros que contemplam textos sapienciais e históricos). O cânon hebraico, que inicialmente ficou restrito a Israel e ao seu território, difundiu-se entre outros povos graças à diáspora que ocorreu depois do segundo exílio do povo de Deus (587-538 a.C.), quando os judeus que viveram como cativos na Babilônia espalharam-se por diversas regiões e levaram consigo a Tanakh.
Um grupo de judeus que migrou para o extremo norte da África, fixando-se próximo à cidade egípcia de Alexandria, produziu por volta do ano 250 a.C. a segunda versão da Bíblia chamada de Septuaginta. Alexandria foi um grande centro cultural do mundo helênico (ou seja, de tradição grega), fundado por Alexandre, o Grande, em 331 a.C; famosa por sua biblioteca, a cidade atraiu inúmeros estudiosos, dentre os quais vários judeus que se dedicaram ao estudo e ao ensino da Tanakh. Segundo conta a tradição, Ptolomeu II Filadelfo (287-247 a.C.), rei do Egito, encomendou uma cópia grega da Tanakh ao sumo sacerdote Eleazar que convocou seis sábios de cada umas das doze tribos de Israel para trabalhar na tradução dos textos. Os setenta e dois judeus sábios transpuseram os textos do hebraico e do aramaico para o grego koiné (Κοινή significa comum ou popular), que era a língua franca da época, isto é, adotada como forma de comunicação entre grupos multilíngues, utilizada nos territórios do Mediterrâneo Oriental e do Oriente Próximo. A Septuaginta (palavra derivada do termo grego setenta, εβδομήντα) ou Versão dos Setenta (LXX) foi a Bíblia conhecida e utilizada por Jesus e por seus apóstolos, cujo cânon era idêntico à versão antiga da Tanakh que continha os sete livros que mais tarde foram desconsiderados pelos judeus (Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico, Baruc, 1 e 2 Macabeus).
Num movimento de restrição da revelação e da Palavra de Deus ao mundo judaico, os fariseus que se deslocaram para o vilarejo israelense de Yavneh (nome traduzido para o latim como Jâmnia), depois da destruição do Templo e da cidade de Jerusalém pelos romanos, em 70 d.C., desenvolveram uma importante escola rabínica e propuseram um concílio, aproximadamente em 90 d.C., no qual definiram o cânon da Bíblia hebraica, excluindo livros que foram produzidos fora da Palestina, em língua grega e após a atuação do sacerdote Esdras (480-440 a.C.). Adotando o cânon de Jâmnia ou cânon restrito da Bíblia a partir do final do século I (que desconsiderou os sete livros deuterocanônicos citados no parágrafo anterior e os fragmentos de Daniel 3,24-90, Daniel 13 – 14, e Ester 10,4-16, redigidos em grego), os judeus diferenciaram a Tanakh da Septuaginta, ao passo que os cristãos optaram pelo cânon alexandrino ou cânon amplo que era utilizado pelos próprios judeus desde os tempos anteriores à tradução grega da Bíblia. Com o passar do tempo, o encontro entre a mensagem de Jesus e a civilização romana, que desencadeou a adoção do cristianismo como religião oficial do império, em 380, logo após quase quatro séculos de perseguição às comunidades cristãs primitivas, fez surgir uma nova versão da Bíblia.
No século IV, o papa São Dâmaso (366-384) encomendou de Sofrônio Eusébio Jerônimo, vulgo São Jerônimo (347-420), um notável sacerdote e estudioso cristão, a tradução da Tanakh e da Septuaginta para o latim, língua oficial do catolicismo romano. De acordo com a tradição da Igreja, entre 383 e 405, Jerônimo se dedicou à tradução dos textos hebraico e grego, de modo que não é possível afirmar que ele tenha realizado tal empreitada solitária e completamente. A versão latina da Bíblia ficou conhecida como Vulgata, cujo nome se traduz por “comum”, justamente porque se trata de um texto simples para ser mais facilmente divulgado. Na passagem do século VI para o VII, o papa São Gregório Magno (540-604) aprovou e incentivou a utilização da Vulgata, que foi oficialmente adotada pela Igreja como versão católica da Bíblia em 1546, durante o Concílio de Trento (1545-1563). A Vulgata latina baseou as traduções em vernáculo da Bíblia, ou seja, as traduções na língua própria de cada nação.
Como se nota, a história de desenvolvimento da Bíblia acompanha o desenrolar da aventura humana na direção de perceber, acolher, interpretar e preservar a revelação divina. Considerando que o desejo de Deus de mostrar-se ao homem para convidá-lo à comunhão consigo é um portento sem precedentes (cf. Is 63,7), é possível entender a complexidade teológico-cultural que envolve o processo de redação e canonização dos textos bíblicos e, consequentemente, o aparecimento de diferentes versões sobre o fato extraordinário de “um Deus nos céus que revela os mistérios” (Dn 2,28) de salvação ao gênero humano.