A morte como encontro com Deus e a morte como política de governo

10 de novembro de 2021

“Ó morte, onde está tua vitória?”, pergunta o Apóstolo Paulo em 1ª Cor 15, 54-55.

Novembro começa com a celebração dos falecidos. E nessa celebração nos defrontamos com a nossa finitude, a que chamamos de morte. Mas o que é mesmo a morte? Como a morte tem sido interpretada? Como nos relacionamos com ela, essa personagem “não grata” que pode nos esperar em qualquer esquina ou encruzilhada da vida? Ou mesmo nas ruas e estradas retas, ou nas praças?…

São Francisco, o pobre de Assis, no século XII, a chamou de irmã. Chamar a morte de irmã é fruto de uma visão cristã do mundo como experiência de fraternidade. Afinal Jesus nos ensinou a amar até mesmo os inimigos. Não que a morte seja inimiga; na verdade, ela é bem amiga. Mas, no fundo, é temida por todos. E amar aquilo de que se tem medo não é fácil. Dizer, com convicção, “irmã morte” é um gesto de coragem. Coragem cristã que vem de uma profunda compreensão dos propósitos de Deus para nós: vida fraterna, finitude e, na finitude, a ressurreição. Vida nova!

Mas, recentemente, o filósofo camaronês Achille Mbembe disse que a morte é também política de estado. É a necropolítica, política de morte. É quando os governos decidem quem deve morrer. É nessa linha que percebemos a ausência de políticas públicas nas periferias de nossas cidades. As periferias devem morrer. Devem morrer porque são periferias, porque não produzem nem consomem, porque fizeram “as opções erradas”, segundo o pensamento do ultraliberalismo econômico. Como se lhes restassem opções a fazer. A periferia não tem méritos. Meritocracia é necropolítica. A política de morte em qualquer governo é uma estratégia meticulosamente pensada, deliberada e colocada em prática sem nenhuma piedade. A necropolítica não tem sentimentos, não vê a vida nem a história de cada um nem das comunidades. Essas são verdades não ditas e até negadas, com veemência. Mas seus sinais são visíveis, audíveis, sensíveis…

Tem uma frase meio clichê: “No mundo não cabe todo mundo”. Essa frase indica a proposta de mundo que idolatra o dinheiro, as riquezas. Um mundo que pode até falar de Deus e em nome de Deus. Mas que pensa já não precisar de Deus, pois colocou as riquezas no lugar da divindade. É um mundo que imola a vida e as vidas no altar do ídolo capital. Nesse mundo, para que uns vivam com muito, na opulência, é preciso que outros morram. Por isso o Papa Francisco afirmou no Terceiro Encontro Mundial com os Movimentos Populares, em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, em 2015: “Essa economia (a de mercado, neoliberal, capitalista) mata” e “outra economia é possível”. Economia de Francisco e Clara. Economia solidária. Economia do cuidado com a Casa Comum e com a vida.

O mundo conta, nesse início de novembro de 2021, mais de 5 milhões vidas perdidas por causa da Covid-19, sendo seiscentas e dez mil no Brasil. Embora tendo pouco mais de 2% da população mundial, o Brasil é responsável por mais de 12% das mortes por Covid. Esses números demonstram que lidamos mal com a pandemia. Tanto o governo quanto a população têm responsabilidade pelas vidas perdidas. Somos todos e todas responsáveis pelos que sofrem as sequelas de uma enfermidade que poderia ter sido evitada. Somos responsáveis pela economia em queda, pelos sonhos que nunca se realizarão, pelos traumas que ficarão. Na pandemia, necropolítica é simplesmente deixar morrer. Deixar morrer sem ar, sem cuidados que poderiam evitar a infecção, sem vacinas. Na pandemia, a morte não é irmã. É, simplesmente, um projeto macabro e insensível.

Novembro de 2021 passará, como não poderia deixar de ser. E o que virá depois de novembro, depois de 2021, depois da pandemia? Virá a ressurreição. A ressurreição dos mortos vivos que teimaram em sobreviver à necropolítica levada a cabo em potência máxima nesses tempos fúnebres. “Resolveram nos matar, mas nós decidimos resistir”. Essa frase de resistência, por vezes ouvida nos movimentos populares, é um dos sinais da ressurreição que já se vislumbra no horizonte. Mas a ressurreição da humanidade virá do carinho afetuoso das mulheres que madrugam para ir ao túmulo do assassinado, levar mais perfume. Virá da desilusão de alguns amigos e amigas que simplesmente voltam para casa. Virá da teimosia de outros que, embora com muito medo, encontram-se reunidos a portas fechadas…

Irmã morte, que nesses tempos tem nos visitado com tanta frequência, seja sempre bem-vinda, mas não como consequência de projetos políticos contra nossos irmãos e irmãs empobrecidos. que continuam sendo crucificados com Jesus Cristo!

Pe. Paulo Adolfo Simões
Presbítero da arquidiocese de Pouso Alegre
Secretário executivo do Centro Nacional de Fé
e Política “Dom Hélder Câmara” – CEFEP / CNBB