Fome: um problema de todos nós
Os números da fome no Brasil e no mundo são estarrecedores, sobretudo quando consideramos os lucros das empresas de produção e comercialização de proteínas e outros alimentos. Mais estarrecidos ainda ficamos quando verificamos que, por trás de cada número, absoluto ou percentual, estão inúmeras pessoas com suas histórias, suas potencialidades, suas vidas. Segundo dados da Oxfam Brasil, organização internacional que estuda a pobreza no mundo, hoje, quase dez por cento da população mundial passa fome e mais de trinta por cento vive em insegurança alimentar.
No Brasil, as pessoas que passam fome são 33 milhões, o mesmo número da década de 90 do século passado. E, ainda no Brasil, que quase 60% da população convive com alguma forma de insegurança alimentar.
No entanto, vivemos um tempo em que o mundo mais produz alimentos na história e o Brasil bate recordes de produção de proteínas, sobretudo grãos e carne. A força econômica do chamado agronegócio – agropecuária para lucro e não para matar a forme, nunca foi tão sentida no país. Diante desse quadro, é preciso nos perguntarmos onde está o problema que faz com que os alimentos produzidos não cheguem à mesa de parcelas tão altas da população. O que leva a termos tanto alimento, lucrarmos tanto com sua produção e comercialização e, ao mesmo tempo, deixarmos tantas pessoas padecerem morrerem de fome?
O best-seller de Yuval Harari (2016), “Homo Deus, uma breve história do amanhã”, aponta a domesticação de plantas e animais como a segunda grande revolução da humanidade e diz também que, desde então, os grupos humanos caminham para se tornarem autossuficientes na produção de alimentos. Porém, ainda segundo esse autor, o modelo econômico liberal capitalista potencializado pela revolução industrial e pela revolução da informação em curso, inviabilizam esse objetivo. Isso por que veem a produção agropecuária como negócio – agrobusiness – e não como alimento.
Também o economista Ladislaw Dowbor (2017), em sua obra “A Era do Capitalismo Improdutivo, Nova arquitetura do poder – dominação financeira, sequestro da democracia e destruição do planeta”, explica em detalhes o que acontece. Esse autor tem ampla experiência em trabalhos na ONU atuando em países pobres e atualmente é um dos articuladores da Economia de Francisco e Clara no Brasil. Ladislau detalha como o chamado “capital rentista” sequestra, além da democracia, também os bens produzidos em detrimento das necessidades das pessoas mais pobres em todo o mundo. Segundo ele, o capital rentista só ganha dinheiro com especulação financeira e nada produz: nem de serviços, nem empregos, muito menos produtos propriamente ditos. Portanto, esse é um sistema imoral e antiético, pois leva grandes parcelas da humanidade a uma subvida e mesmo à morte.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), realiza neste ano a Campanha da Fraternidade (CF), a terceira que reflete sobre a fome. A campanha nos propõe debater a problemática da fome, levantada acima. Constata-se que é preciso um debate profundo, devido à complexidade do assunto e os interesses econômicos e financeiros que o envolvem, como já descrevi. Não se pode limitar essa campanha a algumas ações de distribuição de alimentos ou mesmo projetos de geração de rendas, embora essas ações sejam importantes e até necessárias. Precisamos, porém, ir às verdadeiras causas da fome, que, em suas primeiras causas, trazem consigo grandes interesses econômicos e financeiros desprovidos de qualquer ética. Colocam como centro o dinheiro e não a pessoa humana e a vida no planeta. Biblicamente falando, é a verdadeira idolatria tão denunciada pelos profetas do Primeiro Testamento.
A CF 2023 escolheu como lema o texto de Mateus, na multiplicação dos pães: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16). Esse mandado de Jesus é uma provocação aos seus seguidores e seguidoras para alimentarem os famintos, seus irmãos e irmãs. Isso quer dizer que cristãos e cristãs não podem se calar diante da grande tragédia da fome. Uma análise bem simples da multiplicação dos pães nos traz alguns elementos que nos ajudam refletir a questão da fome no mundo hoje. Vejamos: há uma multidão faminta e Jesus não fica alheio ao seu drama. Também não pergunta por que esse povo está sem comida, se é por falta de ser previdente. Ele simplesmente se comove com sua dor, mais que os apóstolos que queriam despedi-lo. Jesus chama os apóstolos à responsabilidade, mandando que eles mesmos resolvam e alimentem os famintos. A solução é dada com dois elementos que se complementam: a partilha dos pães e dos peixes e a benção pelos bens recebidos de Deus. É o mesmo conteúdo da oração que o padre faz sobre as oferendas consagradas na Eucaristia: frutos da terra e do trabalho humano oferecidas a Deus como sacrifício. Ou seja, o texto indica que a fome é problema de todos nós e a partilha, com o reconhecimento de que os bens vêm de Deus, é, para todos, a solução para o problema.
Diante disso, é preciso reconhecer que a questão da fome é problema da humanidade e que nós, cristãos, somos chamados por Jesus a dar nossa colaboração. Para vencermos esse flagelo, de forma bem simples, a Igreja em sua ação vem apontando três níveis de ação: a) a assistência, que consiste em dar comida a quem está com fome; b) a promoção, que é promover as pessoas em situação de pobreza para poderem, elas mesmas, proverem seu sustento, por exemplo, mediante a preparação para o mercado de trabalho; c) a ação política. Essa é a mais exigente e como nos ensinam vários papas como Francisco, São Paulo VI e Pio XI, também “é a forma mais perfeita de caridade”.
Referências:
HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
Dowbor, Ladislau. A era do capital improdutivo: Por que oito famílias tem mais riqueza do que a metade da população do mundo? São Paulo: Autonomia Literária, 2017.