O divino e o humano em parceria

28 de novembro de 2023

Escrita por iniciativa de Deus para a salvação dos homens, a Sagrada Escritura é uma biblioteca cujos livros nasceram da parceria autoral entre o divino e o humano. A Bíblia é, indissoluvelmente, Palavra de Deus na palavra do homem: “muitas vezes e de muitos modos, Deus falou no passado aos nossos pais através dos profetas” (Hb 1,1). Considerando que ela é o registro teológico de um longo processo de diálogo, deve-se ter em mente que toda comunicação assertiva requer sujeitos linguisticamente qualificados interagindo entre si mediados por um ato de fala: Deus, o emissor sagrado, endereça ao ser humano uma mensagem que salva, capacitando-o para acolhê-la; este, enquanto destinatário, dotado de consciência e liberdade, pode responder ao Senhor, ouvindo, interpretando, rezando e vivendo a boa notícia recebida.

A mensagem de salvação comunicada por Deus na Sagrada Escritura é tão esplêndida que o salmista afirma: “um dia comunica esta mensagem para o outro dia, uma noite a transmite para a outra noite. Não são discursos nem frases ou palavras que não podem ser compreendidos, mas é uma notícia que chega ao mundo inteiro” (Sl 19,2-5). Essa boa nova que se espalha pela Terra tem Deus como seu autor principal: Ele inspirou homens e comunidades a colocarem por escrito a tradição oral em que transmitiam a mensagem que receberam da comunicação divina. Portanto, a Bíblia é essencialmente Palavra de Deus conforme escreveu Pedro: “saibam, acima de tudo, que nenhuma profecia da Escritura surge de alguma interpretação particular. Porque a profecia nunca aconteceu por iniciativa humana; ao contrário, os homens movidos pelo Espírito Santo falaram [e escreveram] como porta-vozes de Deus” (2Pd 1,20-21).

Apesar da Sagrada Escritura não se originar na vontade do ser humano, sendo Deus o seu principal autor, ela é fruto de uma parceria: o homem é co-autor da Bíblia na medida em que colabora para a codificação e a transmissão da mensagem divina.

Onipotente, Deus poderia ter revelado seus desígnios de amor e salvação sem recorrer à ajuda humana, o que preservaria os textos sagrados de inúmeros equívocos causados pela ignorância moral, histórica, geográfica, científica, enfim, cultural do próprio homem. Porém, desde o princípio da revelação, Deus convidou o ser humano para participar ativamente de sua economia salvífica, considerando suas potencialidades e limitações como essenciais para a sua proposta pedagógica. A grandeza de Deus, que escapa aos parâmetros humanos, mostra-se na valorização do próprio homem e não em sua anulação, pois, como cantou o salmista, “contemplando a obra de Deus, perguntamos o que é o homem para dele Vos lembrardes e o tratardes com tanto carinho? Pouco abaixo de Deus o fizestes, coroando-o de glória e esplendor!” (Sl 8,4-6).

Aqueles que colaboraram com Deus no processo de redação dos textos bíblicos, sejam eles indivíduos históricos ou comunidades, são chamados de hagiógrafos – termo de origem grega que significa escritores sagrados -, foram inspirados pelo Espírito Santo: “Deus as revelou [as coisas do céu] a nós, por meio do Espírito Santo. Dessas coisas não falamos usando a linguagem ensinada pela sabedoria humana, mas usando a linguagem que o Espírito ensina” (1Cor 2,10.13). Porém, é preciso aprofundar o conceito de inspiração divina da Bíblia, evitando duas tendências teológicas equívocas. A primeira delas, chamada fundamentalista, trata a Bíblia unicamente como Palavra de Deus e desconsidera os elementos históricos e métodos de interpretação, afirmando a total inerrância bíblica; ela deve ser rejeitada pois considera o ser humano como um fantoche utilizado por Deus para colocar por escrito aquilo que o próprio homem não conhecia. A segunda, denominada racionalista, considera a Bíblia uma literatura religiosa, ou seja, produzida pela cultura humana e interpretada exclusivamente de maneira histórica, minimizando a ação divina. Sendo assim, é numa terceira via, moderada e fundamentada no ponto alto da própria revelação de Deus, isto é, na encarnação da Palavra Eterna (cf. Jo 1,14), que se encontra a ideia de inspiração.

Trata-se da tendência analógica, que busca na comparação entre o mistério da encarnação de Jesus e a parceria entre Deus e o ser humano, no que diz respeito à autoria bíblica, a lógica da inspiração. Conforme está escrito no hino cristológico de Filipenses 2,6-8:

“Jesus, embora sendo Deus, não se apegou ao seu ser divino, mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de um servo e fazendo-se aos homens semelhante. Encontrado como homem, rebaixou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até à morte de cruz”.

Da mesma forma que Jesus é simultânea e eternamente homem e Deus, ou seja, que por meio da encarnação o homem de Nazaré é o Filho de Deus (cf. 1 Pd 5,5) e vice-versa, a Bíblia é indissociavelmente obra divina e humana, pois nela a inspiração de Deus está consignada nas palavras humanas e a linguagem humana, historicizada, transmite a mensagem divinamente inspirada. Deus inspirou homens e mulheres para serem intermediários de Sua revelação, e são eles que, acolhendo e interpretando a comunicação divina, codificaram os livros sagrados e transmitiram a boa nova da salvação. O povo de Israel, por exemplo, reconheceu que Moisés era o mediador entre Deus e os homens: “Moisés, aproxime-se do Senhor e ouça tudo o que Ele, o nosso Deus, tem a dizer. Depois, comunica-nos tudo o que o Senhor, o nosso Deus, falou e iremos atender e colocar em prática” (Dt 5,27).

Assim, chega-se num esclarecimento sobre o princípio de inerrância da Sagrada Escritura: naquilo que depende a salvação do ser humano, a Bíblia não erra por se tratar de inspiração de Deus. A Palavra que salva não comporta erros, pois “em Cristo, também vós ouvistes a Palavra da verdade, o evangelho da salvação” (Ef 1,13). Porém, os textos sagrados, ainda que sejam inspirados por Deus, não foram preservados dos equívocos autorais humanos e das imperfeições relativas às limitações do conhecimento histórico, geográfico, científico e moral das épocas em que foram escritos pelos mediadores da Palavras divina: morcegos não são aves (cf. Lv 11,19), mas mamíferos; o planeta não tem a forma terraplanista de um disco (cf. Is 40,22) ou de um quadrado (cf. Ez 7,2), mas possui o formato quase esférico; a Terra não é estática sobre colunas (cf. Jó 9,6), mas gira no espaço; o sol nunca se movimentou (cf. Js 10,13), mas permanece imóvel; dentre tantos outros exemplos.

Como se nota, cada um dos autores sagrados impregnou os textos bíblicos com as características de seu próprio ser: o autor primário, Deus, é perfeito e aquilo que depende Dele não possui erro, a saber, a salvação humana; o autor secundário, o homem, é imperfeito e aquilo que depende dele pode estar equivocado, a saber, elementos culturais na transmissão da revelação divina.

Porém, a partir de Jesus Cristo toda imperfeição na redação e na interpretação da Escritura, que poderia comprometer o sentido fundamental da Palavra que salva, é corrigida: Ele nos explica com autoridade “todas as Escrituras, começando por Moisés e percorrendo os profetas” (Lc 24,27), corrigindo através de sua encarnação e redenção os desvios da humanidade. Ele próprio, que é a síntese do amor de Deus pelo ser humano, que é verdadeiramente Deus e homem, é também a explicação de que a Bíblia nasce da parceria entre o divino e o humano, pois Ele é o sol que nasce do alto e visita o seu povo “para iluminar os que vivem nas trevas e para guiar os nossos passos no caminho da paz” (Lc 1,79).

Imagem: Barbara Jackson por Pixabay