Por iniciativa de Deus
A Bíblia, termo grego que significa “livros”, nada mais é do que a compilação escrita das palavras e ações utilizadas por Deus para se revelar à humanidade, e pelo ser humano para corresponder à comunicação divina. Trata-se de uma extensa biblioteca composta por 73 livros e dividida em dois grandes blocos:
o Primeiro Testamento, que contém 46 livros e narra a origem e a trajetória do povo de Israel, e o Segundo Testamento, composto por 27 livros que contam a história de Jesus, de seus apóstolos e da comunidade cristã primitiva. A Bíblia, portanto, é o resultado final de um longo processo de revelação divina, pois “toda Escritura é inspirada por Deus” (2Tm 3,16).
A palavra revelação, originária do latim, quer dizer “retirar o véu” e é utilizada na teologia para falar do mistério por meio do qual Deus retira de si mesmo o véu do escondimento, mostrando-se à humanidade e convidando-a para um diálogo de amor. Compreender a Bíblia, dessa forma, requer um aprofundamento sobre a teologia da revelação divina. Cabe, inicialmente, ressaltar que a revelação de Deus é um mistério. Mas em que sentido? Por vezes, a palavra mistério é utilizada para designar aquilo que é incompreensível, obscuro e inatingível pela mente humana. Contudo, para a fé cristã, mistério significa uma realidade que não se deixa dominar pela audácia humana, mas que pode ser explicada e entendida: “a vós é dado conhecer os mistérios do Reino de Deus” (Lc 8,10). Ou seja, mistério é algo que o ser humano pode aprender, mas não consegue apreender, aprisionar, sujeitar à lógica da razão, pois exige o salto da fé: “ao receber pela nossa voz a Palavra de Deus, vós a acolhestes não como palavra humana, mas como Palavra de Deus que age eficazmente em vós que tendes fé” (1Ts 2,13).
Nesse sentido, pode-se aprender o mistério da revelação! Ela é uma iniciativa de Deus que desejou se mostrar aos homens para convidá-los à comunhão consigo: diferentemente das mitologias religiosas presentes nas civilizações antigas – mesopotâmicas, egípcia, grega, romana, nórdicas etc -, em que o ser humano tomou a iniciativa de buscar nos deuses as explicações para os fenômenos naturais e emocionais que experimentava, o Deus monoteísta de Abraão, Isaac e Jacó (cf. Ex 3,6) se antecipou à vontade e à imaginação humanas. Conforme escreveu São Paulo à comunidade dos cristãos da Galácia, “quis Deus revelar em mim seu Filho” (Gl 4,4), isto é, a revelação é sempre uma obra de Deus que, proativamente, faz-se presente e atuante na história humana.
Se por um lado a revelação ocorreu a partir de uma decisão divina, por outro, Deus capacitou o ser humano para perceber, acolher e interpretar seu modo de se mostrar através de palavras e ações. Criado à imagem e à semelhança Daquele que se revela (cf. Gn 1,26), o homem é um animal capaz de Deus: dotado dos potenciais para se comunicar com Deus, segundo sua livre escolha e decisão, o homem possui uma dignidade superior às demais criaturas, já que é a única capacitada para ouvir o chamado divino e respondê-lo conscientemente.
Porém, é necessário destacar que o ser humano sempre percebeu a Deus, que “é o mesmo, ontem e hoje” (Hb 13,8), no contexto de sua cultura. Isso explica porque a imagem de Deus no Primeiro Testamento é marcada por fisionomias de ira, violência e vingança. No contexto histórico em que viveram, tendo de lutar constantemente com outros povos para garantir a posse da terra prometida, os hebreus atribuíram a Deus as características humanas de um guerreiro (cf. Ex 15,3), de um chefe de exércitos (cf. Sl 46,8), por vezes sanguinário e maldoso.
Deus é imutável, Ele é, conforme Jesus revelou, “piedade e compaixão, lento para a cólera e cheio de amor” (Sl 86,15). Dessa forma, o que muda na passagem do Primeiro para o Segundo Testamento não é o Ser divino, mas sim a forma humana de captá-lo é que evolui, ganhando maior clareza e limpidez com a pessoa e a obra de Cristo, já que “ninguém conhece o Pai a não ser o Filho” (Lc 10,22). Essa questão sobre a consciência teológica do ser humano pode ser ilustrada a partir do seguinte exemplo: quando um mesmo objeto é submetido à descrição de vários indivíduos em contextos diferentes, provavelmente o resultado final da atividade apresente divergências quanto à forma de descrever, aos detalhes privilegiados e à leitura de mundo daquele que descreveu; porém, o objeto descrito não mudou, ele apenas foi captado de maneiras adversas.
De igual forma, Deus é (cf. Ex 3,14) e sua essência não está suscetível ao devir, mas as limitações culturais do ser humano foram respeitadas durante a revelação divina, justamente porque fazem parte do caminho pedagógico de amadurecimento na fé, do conhecimento de Deus e de sua vontade salvadora.
Assim, o caminho da revelação passa por três estágios consecutivos, que representam o desenvolvimento da consciência teológica da humanidade. O primeiro, denominado cosmológico (cosmo significa universo), refere-se à compreensão primitiva sobre Deus, quando a revelação era percebida a partir da criação e das criaturas do mundo natural: “vós todas, obras do Senhor, bendizei o Senhor: cantai-o e exaltai-o para sempre!” (Dn 3,57). O segundo, chamado prototípico (protótipo quer dizer primeira imagem), diz respeito às figuras sobre Deus no judaísmo que, anunciadas “pela boca de seus santos profetas” (Lc 1,70), são como uma sombra da imagem perfeita que é Jesus. O terceiro e definitivo estágio, chamado cristológico, é aquele em que o próprio Deus rasga o véu do seu escondimento para contemplar o homem face a face, já que Cristo “é a imagem do Deus invisível” (Cl 1,15).
Da criação aos patriarcas e profetas, até o evento central da história humana que é a encarnação de Jesus, Deus buscou o ser humano e o atraiu para viver Consigo, revelando seu plano de amor e salvação: “todos os que estão com sede, venham às águas. Deem ouvidos a mim, venham para mim, me escutem e viverão. Farei convosco uma aliança eterna” (Is 55,1.3).
Se, no princípio, o ser humano conheceu a Deus, de forma limitada, admirando-se com as belezas naturais por Ele criadas e ouvindo a voz dos pais da fé de Israel, a partir de Jesus, graças à revelação definitiva que Ele opera com sua vida e missão, os olhos humanos podem ver a face divina, tal como afirmou Jó: “eu te conhecia de ouvir falar, mas agora meus olhos te podem contemplar” (Jó 42,5). A revelação contida nas Sagradas Escrituras dá ao coração humano “a sabedoria que leva à salvação pela fé em Cristo Jesus” (2Tm 3,15). Esse é o enredo da Bíblia e tudo ocorreu por iniciativa, única e generosa, de Deus!
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