Traduções do divino

8 de maio de 2024

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Com o passar do tempo e a necessidade de tornar a Palavra divina acessível a todos, as versões arcaicas dos textos inspirados (Tanakh hebraica, Septuaginta grega e Vulgata latina), escritas nas línguas originais dos povos bíblicos, foram traduzidas para diferentes idiomas. O movimento para que “a Palavra de Deus se difunda e resplandeça” (2Ts 3,1) através da publicação de edições em língua vernácula dos livros canônicos foi um processo tão longo e complexo quanto sua transmissão oral, sua compilação escrita e sua canonização pela comunidade cristã. Antes, contudo, de falar sobre essa temática, vale ressaltar que toda tradução comporta um grau de esvaziamento do texto primário: palavras, expressões e sentidos são empobrecidos devido ao fato que as diferentes línguas dos povos não se estruturam anatômica, gramatical e semanticamente de forma homogênea. Além disso, muitas traduções são realizadas a partir de referenciais teológicos modernos que projetam nos textos interesses que, apesar de atualizarem a mensagem salvífica, criam um anacronismo perigoso à compreensão integral do conteúdo de cada passagem bíblica. Dessa forma, escolher traduções fiéis às versões arcaicas e buscar os significados dos textos originais nos contextos em que foram escritos são escolhas importantes para quem deseja conhecer melhor a Bíblia.

Desde o período da dominação romana, nos primeiros séculos da era cristã (séculos II-IV), até a segunda metade da Idade Média (séculos XI-XV), muitos povos tomaram a iniciativa de traduzir a Bíblia para seus idiomas. Até o final do século XI, sírios (árabes), coptas (egípcios) e germânicos (góticos), por exemplo, patrocinados por reis e mosteiros, e motivados pelo uso litúrgico dos textos bíblicos, empreenderam a tarefa de transpor a mensagem salvífica da Palavra de Deus para os dialetos que utilizavam, fazendo aparecer uma multiplicidade de compreensões e interpretações da Bíblia. A partir do século XII, com o crescimento urbano na Europa e a ampliação, ainda que lenta e limitada, da educação para grupos que não pertenciam à elite feudal, houve um maior interesse na leitura dos textos sagrados que levou à criação das Bíblias de bolso. Nessa mesma época, hereges como os cátaros ou albigenses, grupo do sul da França que acreditava na criação do mundo material por um deus mau, também traduziram parcialmente a Bíblia para justificar sua doutrina. Assim, desde o século XIV, a Igreja Católica passou a contestar as traduções vernáculas da Sagrada Escritura, justamente para evitar as manipulações no conteúdo e os equívocos na interpretação dos relatos bíblicos, assumindo no século XVI a Vulgata latina, traduzida por São Jerônimo no final do século IV, como texto oficial.

Embora o catolicismo reconheça os 73 livros canônicos da Vulgata como textos legitimamente inspirados por Deus, inclusive utilizando-os recentemente como referencial para a tradução bíblica que atualmente é utilizada pela Igreja, denominada Neovulgata e promulgada pelo papa São João Paulo II em 1979, o surgimento do protestantismo, no século XVI, produziu um controverso cenário no campo da tradução bíblica. Martinho Lutero (1483-1546), monge agostiniano alemão, inconformado com ações que a Igreja Católica realizou no fim do período medieval, como a venda de indulgências e de relíquias dos santos, mas também com aspectos doutrinários, tais como a obediência ao magistério eclesial e a interpretação comunitária da Escritura, provocou um cisma no cristianismo: a partir das 95 teses que nortearam seu protesto, simbolicamente fixadas na porta da capela do castelo de Wittenberg, em 1517, o monge católico rompeu a unidade da Igreja cristã ocidental. Abandonando o catolicismo, Lutero criou uma vertente religiosa baseada no fundamentalismo bíblico, na negação do magistério e da hierarquia eclesiástica, no repúdio do culto aos santos, na defesa da predestinação dos justos ao céu e na valorização da graça e da fé em detrimento da vontade e ação humanas. Nesse contexto, para diferenciar a identidade protestante da católica, a Igreja reformada, isto é, constituída a partir da Reforma Protestante de Lutero, adotou um cânon próprio do Primeiro Testamento.

Enquanto o catolicismo preservou desde as primeiras décadas do cristianismo o cânon amplo do Primeiro Testamento presente na Septuaginta (46 livros), versão grega da Bíblia anterior ao nascimento de Cristo e, portanto, utilizada por judeus, o protestantismo optou pelo cânon restrito, estabelecido pelo rabinato judaico no final do século I (39 livros). Defendendo que a Igreja católica havia se corrompido no Medievo e não constituía a comunidade fundada por Jesus, os protestantes defenderam o resgate da “Igreja cristã primitiva” e trabalharam para recuperar tudo aquilo que fosse possível sobre os primórdios do cristianismo. Encontrando entre grupos do judaísmo posterior a Jesus o cânon restrito do Primeiro Testamento, diferente daquele cânon amplo usado pelos católicos, os protestantes adotaram-no como forma de diferenciação. Explica-se, dessa forma, porque faltam na Bíblia protestante os livros deuterocanônicos de Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico, Baruc, 1 e 2 Macabeus. Presentes na versão grega da Sagrada Escritura produzida no século III a.C., tais obras compunham o cânon conhecido e lido por Jesus e por seus apóstolos no Segundo Testamento, e por isso encontram-se integralmente preservadas na versão latina de São Jerônimo.

A tradução que Lutero realizou a partir dos textos gregos do Segundo Testamento para o alemão foi publicada em 1522, ao passo que a do Primeiro Testamento, advinda do hebraico e do aramaico, veio a público em 1534, formando o que se convencionou chamar de Bíblia Luther, uma versão popular dos textos sagrados, mas não literal. Esse movimento desencadeou a tradução da Bíblia para vários outros idiomas, dentre eles o português; a tradução portuguesa do cânon luterano com 66 livros (39 do Primeiro Testamento e 27 do Segundo) foi realizada pelo lusitano João Ferreira de Almeida (1628-1691), pastor da Igreja reformada, e publicada num volume completo no ano de 1819, em Portugal. No Brasil, a primeira edição católica do Segundo Testamento foi realizada no Maranhão por Dom Frei Joaquim de Nossa Senhora de Nazaré (1824-1851), entre 1845 e 1847. A partir de então, surgiram inúmeras traduções católicas e protestantes, fazendo conviver no cenário mundial e nacional edições bíblicas variadas, na maioria das vezes utilizadas pelos fiéis sem a percepção de que denotam identidades religiosas e teológicas distintas.

Nas últimas décadas, as principais edições brasileiras da Bíblia católica são: a Bíblia Sagrada, traduzida pelos franciscanos e publicada pela editora Vozes; a Bíblia de Jerusalém, traduzida de uma edição francesa e publicada pela editora Paulus; a Bíblia Ave Maria, traduzida pelos monges beneditinos de Maredsous e publicada pela editora Ave Maria; a Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB), traduzida de uma edição francesa e publicada pelas editoras Loyola e Paulinas; a Bíblia do Pontifício Instituto Bíblico de Roma, traduzida de uma edição italiana e publicada pela editora Paulinas; a Bíblia do Peregrino, traduzida de uma edição espanhola e publicada pela editora Paulus; a Bíblia Pastoral, traduzida de uma edição italiana e publicada pela editora Paulinas; e a Bíblia da CNBB, traduzida dos originais e publicada pela Conferência Nacional dos Bispos como edição oficial para os católicos brasileiros. Conhecer e entender as traduções bíblicas é fundamental para escolher e ler aquela que se adequa a cada credo, reconhecendo que mesmo sendo dita em outras línguas, a Sagrada Escritura é Palavra divina e dela nada se pode tirar ou acrescentar (cf. Ap 22,18-19).

Imagem de Gerd Altmann por Pixabay