A Palavra comunica a Verdade

13 de março de 2024

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Pronunciando de uma vez por todas a sua Palavra salvífica à humanidade (cf. Jo 1,14) através da revelação que foi consignada pelos hagiógrafos nas Sagradas Escrituras, Deus comunicou ao mundo a Verdade que salva: “por sua decisão, Deus nos gerou pela Palavra da Verdade para sermos as primeiras de suas criaturas” (Tg 1,18). A Bíblia, dessa forma, é o livro que contém a Verdade necessária para a salvação dos homens à medida que possui Cristo como seu protagonista, “pois a Lei foi dada por Moisés, mas a graça e a verdade vieram por meio de Jesus” (Jo 1,17). A Verdade bíblica, portanto, não se limita à frieza da letra de uma doutrina, tradição, lei ou ideologia que mata (cf. 2Cor 3,6), mas coincide com a pessoa e a obra de Jesus Cristo que se auto-denominou como “o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14,6), já que, sendo a Palavra eterna e definitiva do Pai, é igualmente a Verdade por meio da qual tudo foi criado e na qual tudo é sustentado (cf. Cl 1,16-17).

A história da salvação narrada em cada um dos versículos e capítulos que formam os 73 livros inspirados por Deus tem Jesus como personagem principal, de modo que ele é a garantia da unidade e da veracidade de todo o conteúdo bíblico, conforme cantou o salmista: “o compêndio da tua palavra é verdadeiro” (Sl 119,160). Mesmo os textos do Primeiro Testamento, escritos muito antes da encarnação da Palavra eterna, foram redigidos sob a autoridade do Espírito Santo tendo em vista o nascimento, a vida, a morte e a ressurreição do Filho unigênito de Deus, tanto que ele próprio disse ter vindo ao mundo não para abolir a Torah – a Lei de Moisés – e os profetas do judaísmo, mas para cumpri-los (cf. Mt 5,17). Atestando a necessidade dos 46 livros do Primeiro Testamento em razão de sua vida e obra, dos quais não retirou nenhuma vírgula (cf. Mt 5,18), ao mesmo tempo que se revelou a Boa Notícia, ou seja, o Evangelho de Deus para o mundo nos 27 livros do Segundo Testamento (a palavra evangelho, em grego εὐαγγέλιον, significa uma mensagem estupenda), Jesus é a Verdade única reafirmada desde o Gênesis até o Apocalipse. Ele é, ao mesmo tempo, Palavra e Verdade que santifica aqueles que nele acreditam (cf. Jo 17,17).

Para entender melhor de que forma Cristo opera a unidade necessária ao texto bíblico a fim de que comunique a Verdade que salva de maneira integral e inequívoca, pode-se pensar os livros que transmitem a revelação divina como um extenso fio de pólvora tensionado entre o poema da criação que inaugura a Torah (Gn 1) e a visão do anjo que reclama a volta de Jesus (Ap 22): a encarnação da Palavra eterna, que marca uma intervenção divina nos meados da história humana, é como uma faísca que se lança no centro do fio de pólvora, produzindo uma carreira de fogo explosiva e instantânea que corre na direção das duas extremidades do fio. Os efeitos salvíficos do mistério pascal de Jesus alcançaram não somente a história que se produziu a partir de sua encarnação, da qual este século XXI participa, mas se lançaram num movimento retroativo que esclarece tudo que os precedeu. Assim sendo, Cristo é a Verdade e, portanto, a certeza da inerrância bíblica, pois é ele quem revisa com sua vida e missão a mensagem transmitida pelos textos sagrados, garantido a unidade e a retidão teológica que ela deve possuir para comunicar a salvação ao gênero humano.

O conteúdo da Verdade comunicado na Bíblia é chamado de querigma. A palavra querigma, derivada do grego (κήρυγμα), diz respeito ao assunto mais importante de uma mensagem, sendo utilizada para designar a realidade fundante e a proclamação fundamental da fé cristã: o mistério da páscoa de Jesus. O querigma, sendo o primeiro anúncio do cristianismo, isto é, a Verdade sobre a qual se ergue o testemunho apostólico-eclesial, é a lente pela qual a bíblia precisa ser lida, interpretada e vivida. Solenemente anunciado por Pedro, chefe dos apóstolos e primeiro papa, logo após o evento de Pentecostes (cf. At 2,22-35) em que o Espírito Santo desceu sobre a comunidade cristã reunida em nome do Senhor ressuscitado, a mensagem querigmática que sustenta o processo de redação bíblica e que comunica a Verdade salvífica e inequívoca, unanimemente contida em todos os 73 livros canônicos, pode ser resumida do seguinte modo: Cristo morto é ressuscitado (cf. At 2,36; 4,10)!

O anúncio da páscoa de Jesus é o elo do Primeiro e Segundo Testamentos, e é na centralidade do querigma cristológico que a Escritura se torna una e portadora da Verdade. Embora Cristo tenha estabelecido a nova e eterna aliança ou testamento no seu sangue (cf. 1Cor 11,25; Lc 22,20), à semelhança do fenômeno causado pela faísca que incendeia o fio de pólvora do meio para as extremidades, ele assume a antiga aliança e lhe dá pleno cumprimento segundo a única Verdade expressa pela Bíblia: “Cristo morreu por nossos pecados, foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras” (1Cor 15,3-4). Assim, a partir da encarnação de Cristo, as figuras (em grego, tipos – τύπος) que aparecem na primeira aliança, antes consideradas verdades por si mesmas, transformaram-se em sombras que sinalizam a existência de uma realidade que se tornou evidente na segunda e definitiva aliança: a Palavra da Verdade, Jesus. Trata-se da leitura tipológica do Primeiro Testamento, em que os personagens da aliança primitiva são tipos, isto é, prefigurações do Filho de Deus.

Assim, se a antiga arca salvou a família de Noé e alguns animais no dilúvio (Gn 6,9 – 8,22), o corpo ressuscitado de Cristo é a nova arca em que toda a criação está redimida (Cl 1,15-20); se o antigo Moisés foi chamado do Egito para libertar Israel das mãos do faraó (Ex 4,18 – 15,21), Jesus subiu do Egito, onde se escondeu da fúria de Herodes, para salvar a humanidade toda (Mt 2); se o mesmo patriarca ergueu a serpente de bronze no deserto para curar os israelitas que eram picados pelas cobras (Lv 21,4-9), Cristo crucificado é levantado entre o céu e a terra para a salvação da humanidade toda (Jo 3,13-15); se Jonas permaneceu na barriga do grande peixe por três dias para depois converter os ninivitas (Jn 2,1 – 3,10), Cristo morto repousou no ventre da terra por igual período a fim de ressuscitar e salvar a humanidade toda (Mt 12,38-40); se o sacerdote Esdras leu o livro da Lei para o povo de Israel repatriado após o exílio babilônico (Ne 8), o sumo sacerdote Jesus Cristo proclamou a palavra na sinagoga e decretou o seu cumprimento em favor de todos os povos (Lc 4,16-21).

Dessa forma, a revelação realizada por Jesus, que tem seu epicentro na sua morte e ressurreição, é a Verdade bíblica ao concretizar a fidelidade de Deus para com o ser humano na economia da salvação. A palavra hebraica emunah (אמונה), utilizada no Primeiro Testamento para designar a verdade, pode ser traduzida por confiança ou fé, sendo assumida pela língua grega como aletheia (αλήθεια), cujo significado é descobrir a realidade; logo, deve-se afirmar que Cristo, ao provar com sua cruz e ressurreição que a promessa divina de redenção universal foi cumprida, mostrou ao mundo a realidade salvífica que estava oculta aos homens desde a criação. A Verdade bíblica, portanto, não é um conceito restrito à ideia de dogma ou princípio revelado inegável, mas uma pessoa que faz concordar aquilo que Deus disse na primeira aliança com o que ele, de fato, fez na segunda aliança: Cristo, “a Palavra da Verdade, o Evangelho que chegou ao mundo” (Cl 1,6).

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