Cansado junto ao poço
No próximo domingo (12), a Igreja Católica celebrará o 3º Domingo da Quaresma. Nessa data, os fiéis terão a oportunidade de escutar, refletir e vivenciar o Evangelho de João 4,5-42, que trata do encontro de Jesus com a Samaritana.
Naquele encontro, observa-se que Jesus estava cansado de sua viagem e, por isso, sentou-se junto ao poço de Jacó. A cena é de uma riqueza sem medida, com múltiplos simbolismos. A menção do cansaço, aparentemente incidental, não pode passar desapercebida. É a primeira vez no Evangelho de São João que se evoca um fenômeno corporal negativo de Jesus, um sinal de debilidade, que atesta a sua humanidade real, a perfeita integridade humana do corpo de Jesus (Chrétien, 2014, p. 100).
Jesus poderia se cansar? Cansar-se de seu caminho? Cansar-se de sua missão? Não seria estranho admitir-lhe essa condição de fraqueza? Santo Agostinho viu no encontro de Jo 4 um sinal da encarnação e da missão de Jesus. Jesus estava debilitado, cansado da sua viagem. Essa viagem é a carne, a humanidade, que assumiu por nós. O cansaço do caminho é o cansaço da carne (Santo Agostinho, 1955, p. 409). Concordando com Santo Agostinho, João Escoto Erígena entendeu o cansaço de Jesus como um sinal forte da encarnação do Mestre, que assumiu a natureza humana cansada.
“O cansaço de Jesus é sua encarnação: assumiu nossa natureza cansada pelos trabalhos e os sofrimentos deste mundo por causa do pecado original (…). Sem esforço, nos criou por sua divindade, por sua humanidade nos recriou com esforço. Permanecendo sempre eterno e imutável em si mesmo e em seu Pai, toma o caminho de sua missão temporal na carne” (Erígena, 1972, p. 288-289).
O cansaço de Jesus no poço de Jacó ajuda a pensar no cansaço existencial contemporâneo. Esse tema é refletido por Byung-Chul Han, um filósofo do Oriente, sul-coreano, e radicado em Berlim. Em seus textos, Han ajuda a compreender o modo de vida do início do século XXI e destaca os problemas vividos pela sociedade capitalista neoliberal do Ocidente.
Sobre o cansaço, Han escreveu o ensaio “Sociedade do cansaço”. Nesse texto, ele descreve que as sociedades capitalistas neoliberais deste tempo vivem um paradigma marcado pela ideologia da positividade que visa a performance, os resultados, a produção, o desempenho, a hipercomunicação e a hiperatividade que leva a um esgotamento dos sujeitos. Esse esgotamento é um cansaço do fazer e do poder, que se apresenta como um infarto existencial. Essa situação problemática, segundo ele, gera um aumento significativo da depressão, dos transtornos de personalidade, das síndromes de hiperatividade e burnout, configurando uma paisagem patológica no início do século XXI (Han, 2017, p. 7-8).
“(…) a sociedade de desempenho e atividade produz um cansaço e um esgotamento excessivos (…) estados psíquicos (…) precisamente característicos de um mundo que é pobre em negatividade e, que em seu lugar, está dominado por um excesso de positividade” (Han, 2017, p. 70).
Há uma saída para esse cansaço que esgota? Han apresenta algumas alternativas: a vida contemplativa; aprender a ver, pensar, falar e escrever; não responder imediatamente aos impulsos; ter controle dos instintos que inibem e limitam; conseguir dizer “não”; estar disposto a voltar-se para o outro; viver uma negatividade da interrupção; ser uma potência de não fazer, como um processo ativo para alcançar um ponto de soberania (Han, 2017, p. 53-58).
Entre essas alternativas, Han explora mais a vida contemplativa, como um contraponto diante do esgotamento humano atual e das enfermidades psíquicas. Ele chama a vida contemplativa de cansaço fundamental, apoiado nas ideias de Peter Handke, ensaísta e diretor de cinema austríaco. Esse cansaço não é um estado de esgotamento, mas é uma faculdade especial, que inspira, que deixa surgir o espírito. É equivalente ao “não fazer”, que permite um sossego especial, um “não fazer” sossegado. Não é um estado de esgotamento de todos os sentidos. É uma condição de cansaço desperto que permite acesso a uma atenção lenta e duradoura, que tira da rápida e curta hiperatenção. O cansaço fundamental é uma forma de salvação, de rejuvenescimento. Não é um cansaço do Eu esgotado, mas um “cansaço-nós”, para o outro, um “cansaço para ti”. O cansaço fundamental, como expressão da vida contemplativa e alternativa ao cansaço que esgota, pede um compasso especial que leva a uma concordância, proximidade, presença, abertura e diálogo, que une os cansados e dá ritmo aos indivíduos dispersos e cansados (Han, 2017, p. 73-78).
A reflexão de Han está cronologicamente distante de Jo 4. Os dois textos possuem finalidades argumentativas distintas e partem de campos de conhecimento diferentes. Porém, seus temas estão próximos. O cansaço que fragiliza esteve presente em Jesus e faz parte do pensamento de Han. As alternativas a essa situação de debilidade também se tocam. Han propõe como saída ao cansaço existencial o cansaço-nós, a abertura ao outro e a disposição para o diálogo e a concordância. Prosseguindo a leitura de Jo 4, após Jesus se sentar cansado junto ao poço de Jacó, vê-se que o Mestre teve atitudes muito próximas das sugestões de Han para superar a fragilidade do cansaço. Jesus conversou com a Samaritana. Dialogou com ela sobre as condições existenciais mais humanas: sede, relações conjugais, afetividade, sexualidade, religiosidade, espiritualidade e preconceitos.
Essas palavras e temas, simultaneamente, distantes e próximos, mostram Jesus Cristo cansado e descansando com a Samaritana, vivendo com ela o “cansaço para ti”, no compasso da vida contemplativa, que os aproximou e deu ritmo à conversão daquela mulher. A partir do Mestre e de pensadores contemporâneos, como Han, é possível encontrar alternativas para o cansaço existencial que se vive hoje. Nos poços cotidianos deste tempo, de encontros e de diálogo com o Outro e os outros, que haja oportunas alternativas de “cansaço-nós” para superar o cansaço que esgota, isola e divide a humanidade.
Referências:
Chrétien, Jean-Louis. Del cansancio. Buenos Aires: Mardulce, 2014.
Erígena, João Escoto. Commentaire sur l’Evangile de Jean. Paris: Cerf, 1972.
Han, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.
Santo Agostinho. Homilías sobre el Evangelio de San Juan. In: Obras de San Augustín. v. XIII. Madri: BAC, 1955.
Precisamos sempre descansar, e acolher o cansaço do nosso irmão principalmente das pessoas mais próximas de nós que as vezes nem percebemos que estão cansados. Observar o tempo de Deus e descansar. Amém
Obrigada padre Thiago🙏