O Brasil democrático
Passado o segundo turno das eleições, impõe fazer uma reflexão sobre a democracia. Vivemos no sistema de governo democrático que talvez não consigamos valorizar devidamente. Primeiro, devido as suas muitas deficiências e por ser fragilizado nos últimos tempos. Essa fragilização se deve tanto aos desgastes normais das construções políticas quanto aos duros ataques sofridos. Outro elemento que contribui para a pouca valorização da democracia é que vivemos 37 anos da redemocratização do país, depois de vinte e um anos de governo autoritário. Assim, as pessoas com menos de quarenta e cinco anos viveram praticamente toda a sua existência no regime democrático. Por isso, possuem enorme capacidade de perceberem as suas deficiências. Porém, como só há essa experiência, não conseguem fazer a comparação com um governo autoritário.
Diante disso, é preciso reconhecer que a democracia, embora com muitas deficiências, nos oferece a possibilidade de construir um Brasil melhor em que, se não todas, a maioria das necessidades de sua população seja contemplada. A grande vantagem da democracia é que é uma construção coletiva. Nela, todos são ouvidos e os temas nunca estão fechados. Sempre é possível mudar.
Mas, o que é mesmo democracia? O conceito de democracia vem da Grécia antiga que, em algumas cidades, deixando de lado o governo de um tirano, estabelece o governo do povo. Na tirania, a autoridade dos governantes vem de ter nascido de uma família nobre ou de ter acumulado uma fortuna. Na democracia, o poder “emana do povo” que elege seus dirigentes. Em suma, “democracia é o governo do povo pelo povo”. Alguns estudiosos da democracia, como Maurício Abdalla, da Universidade Federal do Espírito Santo, afirma que democracia mesmo só existiu nas primeiras comunidades cristãs relatadas no livro dos Atos dos Apóstolos e nas comunidades dos povos originários, como dos indígenas no Brasil. Sendo essas comunidades pequenas, é maior a possibilidade de que toda a população ajude a decidir a vida da polis, da aldeia.
Hoje, o mundo conhece dois modelos de democracia que se criticam mutuamente. Um modelo não reconhece o outro como democrático. Temos o modelo da democracia liberal representativa, como a do Brasil. Nesse modelo, todos os cidadãos aptos podem votar e serem votados para os cargos públicos, desde que estejam filiados a partidos políticos. Porém, uma vez escolhidos, praticamente recebem uma carta-branca para fazer o que querem. Os mecanismos legais que a sociedade dispõe para interferir na ação dos governos, embora assegurados na Constituição Federal, são pouco usados. São eles: os plebiscitos e os referendos. Podemos enumerar como instrumentos de participação popular também os Conselhos de Direitos e as audiências públicas. Esses instrumentos, embora obrigatórios, são pouco valorizados pelos governantes e pouco compreendidos pela própria sociedade. O outro modelo democrático existente é o dos países socialistas como China e Cuba. Nesse modelo, não há diversidade partidária. No entanto, quem deseja participar da vida política do país pode se filiar ao partido único. Dentro desse partido, tudo é decidido no voto, assim como a escolha dos representantes e a classe dirigente. Esses modelos também usam de forma mais ampla os diversos instrumentos de participação da sociedade na vida política do país, sobretudo no que se refere à política local.
O filósofo italiano Norberto Bobbio, falecido em 2004, diz que a democracia é cansativa e trabalhosa, pois nunca está acabada. Segundo o pensador, aí está a força e a fragilidade da democracia. É sempre um edifício em construção que pode ruir a qualquer hora, mas que pode também se tornar cada vez mais forte, belo e adequado a seus propósitos. Penso que não seja pouca coisa.
Voltemos ao tema pós-eleições no Brasil. É fundamental que façamos a defesa da democracia, para que não a percamos. Perdê-la significa não ter mais a oportunidade, ao menos por um tempo, de reformá-la e melhorá-la. A tarefa da defesa e do aprimoramento da democracia é de toda a sociedade e também das Igrejas. Por isso, nós cristãos e cristãs não podemos nos furtar de dar a nossa contribuição. Arrisco aqui a apontar, bem superficialmente, algumas sugestões para o fortalecimento da democracia. Primeiramente, é preciso valorizar as instituições democráticas. Por instituições democráticas entendemos os três poderes da república: legislativo, executivo e judiciário. Precisamos defender, sobretudo, a justiça eleitoral que deu provas de competência na condução de uma eleição comprovadamente limpa e transparente. Além disso, é preciso defender também as universidades como centros da produção de conhecimento e tecnologia, as associações de classes, como OAB, ABI e CNBB, e as associações dos trabalhadores, como os sindicatos. Depois, é preciso investir profundamente na formação do povo cristão e religioso em cidadania e política. A importância do voto religioso tornou-se fundamental e essa relevância veio para ficar. As escolas de Fé e Política podem contribuir nessa linha. Por fim, é preciso acreditar e fortalecer os Movimentos Sociais. O Papa Francisco lhes dá grande importância e tem realizado vários encontros com seus representantes. Por natureza, os movimentos sociais são como que irmãos das nossas Pastorais Sociais, que também precisam ser valorizadas.
Por fim, é importante lembrar que, como cristãos, precisamos fazer isso imbuídos do espírito do Evangelho. Fazer o que Jesus faria em nosso lugar e nos indicou: “Fazei a mesma coisa que eu fiz” (Jo 13,15). Sermos servidores uns dos outros, sobretudo dos mais pobres. Imbuídos do espírito do Evangelho, precisamos também ser alimentados por uma mística muito profunda, verdadeira e que nos coloque em sintonia com Deus.
Bibliografia:
PAPA FRANCISCO. Fratelli Tutti. Edições CNBB, 2020
NORBERTO BOBBIO. Qual democracia?. Edições Loyla,2010
JACQUES RANCIÈRE. O ódio à Democracia. Boi Tempo, 2020