O humano transmite o divino
Tomando a iniciativa de Se mostrar ao ser humano, Deus o capacitou para acolher, compreender e viver a mensagem de Sua revelação. Se num primeiro momento a transmissão oral da manifestação divina foi suficiente para a vida de fé do povo de Deus, consolidando a tradição judaico-cristã primeva como uma experiência religiosa baseada na contação das ações e palavras divinas em vista da salvação humana, com o passar do tempo e a mudança das gerações, o testemunho oral se converteu em relato escrito para garantir que a mensagem divina não se perdesse: como escreveu João sobre o objetivo do seu livro, “estes sinais foram escritos para que creiais que Jesus é o Messias, o Filho de Deus. E para que, acreditando, tenhais vida no nome Dele” (Jo 20,31). Trata-se de um longo processo de transmissão da Palavra de Deus que se encontra organizado na introdução do evangelho segundo Lucas: a revelação divina se cumpriu entre os homens (cf. Lc 1,1); alguns homens presenciaram a revelação e transmitiram oralmente ao povo o que viram e ouviram (cf. Lc 1,2); e, posteriormente, comunidades decidiram escrever a catequese que receberam dessas testemunhas oculares da revelação (cf. Lc 1,3).
Todo este caminho de transmissão da mensagem de Deus, que nasceu de uma iniciativa sobrenatural e se desenvolveu a partir do interesse do povo em conservar viva a Palavra que o salva, foi realizado por inspiração divina, mas também, em alguns casos, por uma disposição meramente humana. A Sagrada Tradição da Igreja (compreendida como a dimensão da fé que se deduz da Sagrada Escritura pela ação do Espírito Santo através dos apóstolos e de seus sucessores – o papa e os bispos), por meio do seu Sagrado Magistério (entendido como a missão de guardar o depósito da fé, isto é, de transmitir os ensinamentos de Jesus com fidelidade), acolheu e reconheceu os livros inspirados por Deus, formando o que se convencionou chamar de cânon bíblico. Portanto, é na dinâmica da fé eclesial que, sob a ação do Espírito Santo e a guia dos apóstolos, a comunidade cristã testemunhou a regra dos livros inspirados por Deus, separando-os dos relatos meramente humanos.
Antes, porém, de falar sobre os livros que não foram acolhidos como divinamente inspirados pela Igreja cristã primitiva, é válido ressaltar que a fé católica se baseia em três pilares, como se nota pelo próprio processo de transmissão da Palavra de Deus descrito anteriormente: a Bíblia, a Tradição e o Magistério. Diferentemente do protestantismo, cuja fé se enraíza na Bíblia por ela mesma e somente nela, privilegiando um estilo de interpretação (identificado como fundamentalismo bíblico) literal e individual das palavras, fatos, elementos e personagens que compõem a história da salvação compilada nos livros canônicos, o catolicismo interpreta a Palavra de Deus, que é o fundamento por excelência do seu credo, seguindo a mesma lógica eclesial de sua inspiração, pois “onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, aí estou no meio deles” (Mt, 18,21), disse Jesus.
Se a Bíblia foi escrita em e por comunidades que ouviram a catequese oral daqueles que testemunharam a revelação divina, então ela deve ser acolhida, compreendida e vivida comunitariamente, por isso a Igreja católica desenvolveu sua fé sobre o fundamento da Palavra transmitida pela Tradição e interpretada pelo Magistério, pois Jesus disse aos seus apóstolos: “quem vos ouve a Mim ouve; e quem vos rejeita a Mim rejeita; e quem Me rejeita, rejeita Aquele que Me enviou” (Lc 10,16). Tradição e Magistério, desse modo, são dimensões eclesiais inerentes ao projeto de salvação de Deus que desejou contar com a mediação de homens e mulheres para revelar-Se, e, portanto, necessárias à compreensão verossímil da mensagem bíblica. Obedecendo à essência comunitária da fé em Cristo, a Igreja reconheceu 73 livros como canônicos, já que, de acordo com a inspiração do Espírito Santo, foram identificados como textos que contém fidedignamente a Palavra de Deus que salva o homem.
Os livros canônicos, ou seja, aqueles que compõem o cânon (em grego, o catálogo ou a regra) da Igreja cristã, são divididos em dois grupos: os protocanônicos (em grego, canonizados primeiramente) e os deuterocanônicos (em grego, canonizados posteriormente). São protocanônicos aqueles textos sobre os quais nunca se teve dúvida a respeito de sua inspiração divina, ao passo que os deuterocanônicos são os escritos que entraram no cânon após a investigação sobre sua intencionalidade sobrenatural; trata-se, assim, de uma distinção cronológica que não cria ressalvas em relação à natureza divina dos textos. Dentre os livros deuterocanônicos do Primeiro Testamento estão Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico, Baruc, 1 e 2 Macabeus (rejeitados pelo protestantismo); já a carta aos Hebreus, a carta de São Tiago, a 2ª carta de São Pedro, a 2ª e 3ª carta de São João, a carta de São Judas e o Apocalipse são as sete obras deuterocanônicas do Segundo Testamento.
Na dinâmica de transmissão do depósito da fé, muitas vezes a revelação foi interpretada e registrada sob a ótica da especulação puramente humana, produzindo um tipo de literatura religiosa que, apesar de falar sobre Deus e o seu povo de forma edificante ou herética, não é divinamente inspirada e da qual independe a salvação da humanidade. Tratam-se dos livros apócrifos, cujo nome em grego significa “livros ocultos”, já que são obras que não foram reconhecidas como fruto da ação do Espírito Santo e não entraram no cânon oficial da fé cristã. Muitos são os exemplos de textos apócrifos: podem-se citar os livros veterotestamentários (referentes ao Primeiro Testamento) de Enoque, 3 e 4 Esdras, 3 e 4 Macabeus, Salmos 151-155 etc, escritos entre os séculos II a.C. e I d.C.; já os livros neotestamentários (a respeito do Segundo Testamento) mais famosos são os evangelhos de Tiago, Tomé, Pedro, Nicodemos etc, sem contar as várias cartas, atos e apocalipses, todos redigidos entre os séculos II e IV d.C..
Os textos apócrifos foram assim designados pela Tradição da Igreja por serem pseudepígrafos (de autoria duvidosa, falsamente atribuída a algum autor), heréticos (com erros teológicos) ou extralitúrgicos (lidos de forma privada e não comunitária). Os apócrifos ortodoxos, isto é, concordantes com a doutrina apostólica, oferecem elementos históricos, geográficos, políticos, culturais, morais e religiosos que colaboram para o estudo dos textos canônicos e para a tradição religiosa católica, como é o caso do evangelho segundo Tiago em que se encontram os nomes dos pais da Virgem Maria, Ana e Joaquim. Todavia, os apócrifos heterodoxos são divergentes do Sagrado Magistério e não auxiliam no estudo bíblico por apresentar equívocos doutrinários como o gnosticismo e o docetismo, heresias dos primeiros séculos do cristianismo que defendem, respectivamente, a identificação da matéria com o mal e a negação da existência do corpo físico de Cristo.
Sem a Igreja não existiria a Bíblia, pois a comunidade dos cristãos, por meio de um rigoroso processo de transmissão da revelação divina, testemunhou a inspiração dos textos sob a orientação do Espírito Santo, especificando os livros que não objetivam a glória de Deus e a santificação dos homens. Graças à seriedade histórica e teológica do caminho de transmissão do depósito da fé que culminou com a canonização da Bíblia, pode-se concluir que “se alguém tirar alguma coisa das palavras do livro da profecia, Deus vai tirar dessa pessoa a sua parte da árvore da Vida e da Cidade santa, das coisas que estão descritas neste livro” (Ap 22,19).
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