Para a salvação dos homens
A revelação de Deus, cuja história se encontra consignada nos textos sagrados, desde o primeiro versículo de Gênesis até a conclusão do Apocalipse, tem como objetivo comunicar a salvação divina à humanidade. A Bíblia, portanto, é o registro escrito, o resultado final, do longo processo dialógico por meio do qual Deus convida, insistente e respeitosamente, o ser humano, usando de gestos e palavras, para voltar à comunhão plena com o seu Senhor. Por isso mesmo, durante a liturgia da Palavra, seja ela de forma primaz na Santa Missa ou na celebração dos outros Sacramentos, logo após o anúncio do Evangelho, a Igreja é surpreendida com a exclamação “Palavra da Salvação”, a qual confirma com a resposta de louvor “Graças a Deus”. A Bíblia é o livro para a salvação dos homens pois contém “A Palavra” de Deus, não no sentido limitado dos verbetes gramaticalmente organizados e semanticamente encadeados, mas segundo o que está escrito no prólogo do quarto evangelho: “no princípio existia a Palavra, e a Palavra estava junto de Deus, e a Palavra era Deus. E a Palavra se fez carne e veio morar entre nós” (Jo 1,1.14).
Jesus, a Palavra de Deus que salva o homem, é o protagonista da história narrada pelos 73 livros bíblicos; no entanto, é preciso compreender os fatos que antecederam e sucederam a encarnação da Palavra Eterna como participantes de uma única e mesma intencionalidade salvífica.
O enredo bíblico, sintetizado em Cristo, que foi preparado pelo Primeiro Testamento e realizado pelo Segundo Testamento, é chamado de economia da salvação. Considerando-se que a palavra grega economia significa organizar a casa, a expressão teológica “economia da salvação”, utilizada pela soteriologia – ciência que investiga a salvação dos homens por meio de Jesus e da sua missão – designa o modo como Deus planejou e realizou a obra da redenção humana:
“vós fostes salvos pelo precioso sangue de Cristo. Ele era conhecido antes da criação do mundo, mas vos foi revelado no final dos tempos. Por meio Dele vós credes em Deus, que O ressuscitou da morte e O glorificou, a fim de que a vossa fé e esperança permaneçam em Deus” (1Pd 1,19-21).
A Bíblia começa a narrativa sobre a economia salvífica mostrando que, no princípio, a criatura humana experimentou uma situação existencial de plena união com o Criador, chamada “estado paradisíaco” (cf. Gn1-2). Nesta condição originária de Paraíso não havia a barreira do pecado e Deus se revelou ao ser humano como um companheiro, sem véus: Ele “passeava no jardim do Éden, à brisa do dia” (Gn 3,8). Tendo criado o ser humano livre, Deus preservou a autonomia da consciência humana, infundindo no homem a sua graça vivificante ao mesmo tempo que não o manipulou como uma marionete. Por isso, a criatura, utilizando-se da sua liberdade de escolha, conhecida como livre-arbítrio, decidiu-se por ocupar o lugar do Criador, praticando o pecado original. Tal pecado, que nada mais é do que a ambição de tornar o homem senhor de si mesmo, constituindo-se como a medida e o fim de sua própria existência, de seu semelhante e da criação, determinador moral daquilo que é bom ou mau, é o primeiro de todos – por isso é chamado de pecado original -, mas também é a causa de todos os outros pecados da humanidade – sendo chamado de pecado originante: “só não podeis comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque, a partir do dia em que dela comerdes, caminhareis para a morte” (Gn 2,17).
A desobediência humana (cf. Gn 3,6), que tem suas raízes na negação da primazia de Deus e na resistência do homem em se submeter a um Ser divino maior do que seu próprio umbigo, é o fio da trama bíblica: cada página da Sagrada Escritura conta a saga de um Deus que, loucamente apaixonado por sua criatura, providencia as graças necessárias para a salvação dos homens.
A Bíblia narra a aventura histórica da graça de Deus que é abundantemente derramada, por iniciativa do próprio Deus e não por mérito humano, gratuita e constantemente, na miséria do homem para devolver-lhe a dignidade de filho de Deus, restaurando por completo a comunhão consigo mesmo, com o próximo, com a criação e, principalmente, com o seu Criador. Todo gesto e palavra de Deus, na sua economia da salvação, não tem outra finalidade que não seja a de restabelecer a comunhão com o gênero humano, perdida pelo pecado: quando instruiu pelos patriarcas, instruiu para salvar; quando ensinou pelos profetas, ensinou para salvar; quando governou pelos reis, governou para salvar; quando revelou sua face em Jesus, revelou-a para salvar, pois “o Filho do homem veio procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19,10); quando testemunhou pelos apóstolos, testemunhou para salvar.
Se o Primeiro Testamento descreve as tentativas de Deus para revestir o povo de Israel com as vestes da salvação (cf. Is 61,10), o Segundo Testamento mostra que, pelo sangue de Cristo “derramado para o perdão dos pecados” (Mt 26,28), a salvação se tornou universal e definitiva. A obra de Cristo na cruz é plena e é por ela que Deus salvou a humanidade de uma vez por todas: Jesus “pagou um alto preço pela redenção dos homens” (1Cor 6,20).
Dessa forma, não cabe a ninguém “ganhar”, “conquistar” e “merecer” a salvação. A revelação bíblica, especialmente no que respeita a Cristo, deixa claro que “é pela graça que fostes salvos por meio da fé. E isso não provém de vós, mas é dom de Deus. Não vem das obras, para que ninguém se encha de orgulho” (Ef 2,8-9). A Bíblia é uma grande carta remetida por Deus ao homem para lhe anunciar uma notícia boa, sem precedentes: “na esperança já somos salvos” (Rm 8,24). Caso acolhesse esta graça, tão maravilhosa e ao mesmo tempo comunicada de um jeito simples, o coração humano viveria mais feliz e preenchido de sentido: “feliz aquele que foi perdoado e cujo pecado já foi encoberto. Alegrem-se no Senhor, festejem os salvos, e deem gritos de alegria todos os retos de coração” (Sl 32,1.11).
Ocorre que, distante da Palavra da Salvação, a criatura se convence que suas obras e seus esforços são a causa de sua redenção: a atitude de alguém que pensa e age assim não se distancia do orgulho que ocasionou a queda da humanidade no começo dos tempos! A Bíblia ensina que tanto a revelação quanto a salvação são obras de Deus, são graças concedidas ao ser humano por benevolência Daquele que “se manifestou para a salvação de todas as pessoas.
Jesus se entregou em nosso favor para nos resgatar de todo pecado e purificar um povo que lhe pertence, dedicado às belas obras” (Tt 2,11.14). Toda bela obra que o ser humano pode realizar não serve para lhe conquistar a salvação, pois isso já foi realizado por Jesus na cruz, mas é útil para preservar nele a redenção que recebeu como graça, sem cobranças. As orações (cf. 1Tm 2,1-4) e ações (cf. 1Tm 2,10) que o homem pratica não acrescentam nada à economia salvífica, pois ela é uma obra iniciada por Deus (cf. Fl 1,6) e como tal será completada por Ele, mas servem para a santificação humana, isto é, para que o homem “se comporte à altura do evangelho de Cristo” (Fl 1,27), correspondendo dignamente à graça da salvação recebida e comunicada pela Bíblia.
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