Os amigos de Jesus na sua Paixão
Ao receber o convite para escrever um artigo a ser aqui publicado na ocasião da Semana Santa, lembrei-me de que, em certa ocasião, consultando os arquivos da Cúria Arquidiocesana, deparei-me com um pequenino livro, intitulado “Os Amigos de Jesus na sua Paixão”. Nele continha o registro de um sermão pregado na Catedral de Campinas (SP), no dia 21 de abril de 1916, Sexta-feira Santa, por monsenhor Octávio Chagas de Miranda, que naquele momento já havia sido nomeado o terceiro bispo diocesano de Pouso Alegre (MG) e aguardava sua ordenação em 04 de junho de 1916.
Muito me impressionou o sermão de dom Octávio. Percebi que os mais de cem anos que nos separam do texto, em nada diminuíam a sua beleza literária, sua profundidade espiritual, sua atualidade e o desejo de reflexão que desperta em nós. Tomei, então, a iniciativa de não escrever um artigo, mas transcrever, na íntegra, este sermão de dom Octávio (somente alterando a grafia das palavras que naquela época era outra). Assim, fazendo memória daquele que por mais de 43 anos esteve à frente de nossa arquidiocese, suas palavras podem, ainda hoje, nesta Semana Santa de 2023, nos ajudar a meditar, refletir, rezar e descobrir se estamos, verdadeiramente, nos comportando como amigos de Jesus.
Os amigos de Jesus na sua Paixão
“Vamos também nós e morramos com Ele.” (Jo 11,15)
Estas palavras que o apóstolo São Tomé pronunciou, num impulso generoso, quando, lá das margens do Jordão, Jesus resolvera voltar à Judeia, para chamar à vida o seu amigo Lázaro, deveríamos nós pronunciar também hoje, comemorando a paixão do Redentor.
Aceitando a incumbência, bem superior às minhas forças de falar-vos sobre o acontecimento mais notável da humanidade, de abrir aos olhos desta multidão de crentes, algumas dessas páginas de sangue e de horror, em que vem narrado o mistério da nossa Redenção, eu não quero que a minha palavra humilde tenha apenas o efeito de uma sonoridade estéril ou mesmo de um grito que emocione. Eu pretendo alguma coisa a mais. Quisera que ela penetrasse fundo em vossos corações e deles arrancasse, sincera e generosa, aquela mesma exclamação do apóstolo: “Vamos também nós e morramos com Ele!”
Caríssimos irmãos. Quando inopinadamente chega aos nossos ouvidos a notícia de uma desgraça, de uma grande dor sofrida por pessoa amiga, o nosso primeiro impulso é ir para junto desse coração ferido pela desventura, para socorrê-lo ou para sofrer com ele.
Mas quando, por sobre o infortúnio daquele amigo, vemos a indiferença, a covardia e a ingratidão dos que tinham o dever de ampará-lo e confortá-lo, ah! então sentimos ainda mais a necessidade de correr ao encontro daquela dor, de dizer aquele coração duplamente torturado, que ele não está só, que pode contar com a nossa dedicação e mesmo com o nosso sacrifício.
É o que se dá com a Paixão de Jesus: com aquela que terminou no alto do Calvário e com essa outra que Ele vai padecendo na sua Igreja, no seu coração ainda vivo e palpitante de amor pela humanidade. Numa e noutra encontramos, a provocar a nossa generosidade, a mesma fraqueza, a mesma defecção dos amigos que dormem indiferentes, quando o coração de Jesus agoniza; amigos que fogem, quando Ele cai nas mãos de seus inimigos; amigos que o renegam, quando podiam e deviam defendê-lo com seu testemunho.
Vamos meditar, meus caros irmãos, essa dupla paixão de Jesus. Mas vamos, ao mesmo tempo, como um protesto contra a fraqueza dos que não souberam e dos que não sabem cumprir os deveres da amizade, acompanhá-lo com o coração, acompanhá-lo até o sacrifício, acompanhá-lo até a morte: “Vamos também nós e morramos com Ele!”
Amigos que dormem
Jesus terminara, com seus apóstolos, a memorável ceia em que nos legou o tesouro precioso da Eucaristia. A frente dos seus onze companheiros, – porque Judas havia já partido para concertar o ajuste nefando – segue o Divino Mestre pelas estradas sombrias do vale do Cédron, em busca de Getsêmani, o lugar habitual do seu repouso.
Era noite adiantada e a lua mal se elevava no horizonte. Na escuridão quase completa, apenas se avistavam os clarões das tendas inúmeras dos peregrinos que afluíam a Jerusalém naqueles dias. A hora era por demais propicia às reflexões austeras, se a expectativa de acontecimentos terríveis não viesse, por si só, lançar sobre o semblante de Jesus e de seus amigos uma nuvem de tristeza imensa. As palavras misteriosas pronunciadas nesse trajeto, a prece feita por Jesus ao avistar o alto do templo iluminado pelos reflexos da lua, depois o silêncio, apenas interrompido pelos passos dos viandantes, pelo farfalhar das árvores ou pelo murmúrio da torrente de águas negras, tudo vinha dar aquela hora uma nota de profunda melancolia.
Eram dez horas quando Jesus e seus apóstolos, atravessando a ponte do Cédron, penetraram no Jardim das Oliveiras. Lugar memorável onde se passou uma das cenas mais terríveis da paixão!
Como nos seria grato contemplar esta paragem tão querida às almas cristãs, descansar à sombra das mesmas oliveiras que assistiram às aflições de nosso Redentor, e que parecem imobilizadas pelo sangue divino escorrido sobre a suas raízes venerandas!
Mas entremos também nós, pelo pensamento, e observemos. Depois de alguns passos, por entre os ciprestes ou sobre a cúpula verdejante dos sicômoros e palmeiras, o grupo divide-se em dois. Jesus não quer que todos os apóstolos sejam testemunhas da sua fraqueza humana. “Ficai aqui, enquanto eu vou mais além para orar”. E chamando apenas Pedro, Tiago e João, adianta-se com eles até as proximidades de uma gruta existente no fundo do Jardim.
Mas não! Nem eles, nem os apóstolos prediletos, que viram a sua glória no Tabor, podem presenciar o escândalo de um Deus que se sente oprimido pela dor e pelo desalento! “Minha alma está triste até a morte, deixai-vos ficar aqui e velai comigo”.
E ele caminha um pouco mais, desfigurado, como um espetro que desliza entre as sombras, até que se prostra em súplicas e gemidos, que atravessam o silêncio da noite vão chegar aos ouvidos dos apóstolos com o prelúdio da tragédia horrenda prestes a começar. Mas alguns passos ainda e, na solidão tenebrosa da gruta, a tempestade se desencadeia em todo o seu furor, contra a vítima oferecida para o resgate da humanidade pecadora.
É indescritível o que se passou nessa hora – hora de angústia, hora de agonia, na expressão do Evangelho. “E começou a ficar com medo e angústia”, diz São Marcos, “triste e aflito”, diz São Mateus. Quatro paixões diferentes, segundo Bossuet: “E começou a sentir pavor e tédio, tristeza e aflição”. O medo, o pavor, diante das dores e opróbrios que ele vê como se fossem presentes. Sente se preso e arrastado, ouve as acusações e os insultos dos seus inimigos, e depois – o grito de morte e morte horrenda de cruz. As bofetadas, os açoites que lhe rasgam as carnes, os espinhos que se cravaram em sua adorável cabeça, o peso da cruz, a caminhada para o Calvário, os cravos que lhe traspassam as mãos e os pés e, finalmente a sua crucifixão, em meio à vozeria e a blasfêmias da população, todo esse conjunto de sofrimentos inauditos pesa, de um só golpe sobre a sua natureza delicada.
Foi aí então que, acabrunhado, apavorado, sentindo como se fora simples mortal, à violência daquelas dores, exclamou: “Meu Pai se é possível, passe de mim este cálice; porém não se faça o que eu quero mais o que tu queres”. Feita essa súplica, levanta-se, vai ter com os três apóstolos mais queridos e os encontra dormindo.
Ah! Que desilusão! Buscar lenitivo em corações amigos e encontrá-los mergulhados no sono da indiferença!
Não se diga que eles ignoravam o que se passava na alma de Jesus, porque o descreveram mais tarde; viram, portanto, furtivamente, todos os seus desfalecimentos e todas as circunstâncias principais da sua agonia. E foi certamente com espanto e tristeza que Pedro e os seus companheiros despertaram à estas palavras do Mestre: “Simão, tu dormes? Não pudeste vigiar uma hora sequer? Vigiai e orai, para não entrardes em tentação.”
Jesus volta, em seguida para a gruta, onde novas torturas o esperam. Depois do pavor, vem o tédio, o horror, diante do quadro repugnante que se desenha na sua imaginação. Os pecados, as abominações, os crimes de toda humanidade perpassam diante dos seus olhos, como a projeção fantástica de um bando de feras, salpicando de lama e de sangue a pureza imaculada de sua alma. Ele vê “com toda a vivacidade de sua penetração divina, os pecados dos reis e dos povos, dos ricos e dos pobres, dos pais e dos filhos, dos sacerdotes e dos leigos, as maledicências e calúnias, as impudicícias e adultérios, as simonias e as usuras, as traições e as vinganças” (Bourdalue). É a realização da palavra do Salmista: “As torrentes da iniquidade encheram-me de horror”.
Arquejante sobre o peso de tantas abominações, sentindo toda a repugnância que existe entre o bem supremo e o mal em toda a sua extensão, Jesus exclama de novo: “Meu Pai, se não é possível que esse cálice passe sem que eu o beba faça-se a tua vontade”. Ah! Mas agora – quem sabe? – no coração dos amigos vai encontrar um refúgio, uma palavra que dissipe a sombra nefanda em que está mergulhada a sua alma! Vai procurá-los, e de longe, meneia a cabeça com profunda mágoa, porque os amigos continuavam a dormir – os seus olhos estavam pesados de sono.
Após essa nova desilusão, torna-se ainda mais espesso o véu de tristeza que envolve a alma de Jesus. Ele começa a ver a inutilidade do seu sangue. Nos antros infernais, escancarados diante de seus olhos, entre gemidos e imprecações, vão caindo almas sem número, pelas quais Ele vai morrer e que desprezam a sua misericórdia. Qual mãe carinhosa que em vão soluça a beira de um abismo chamando pelo filhinho que lhe caíra dos braços, Jesus todo se confrange, ao pensar no grande número dos que se condenam, dos que seguem a estrada larga da perdição.
Dirige ainda ao Pai eterno a mesma angustiada prece, e como a visão que o tortura neste momento é a mais dolorosa ao seu coração cheio de amor por nós, sente não somente tristeza, mas um desfalecimento profundo, um desalento de morte, porejando sobre o solo seu sangue precioso, como a primeira nascente dessa caudal imensa que ia lavar a multidão dos pecados humanos. Um anjo aparece-lhe então para confortá-lo, para animá-lo a esgotar o cálice daquelas amarguras.
Bem justo era que do céu viesse o conforto, para quem tão desamparado se encontrava, mesmo dos seus mais queridos amigos, que ainda dormiam, que dormiam sempre.
Caríssimos irmãos, tendo diante dos olhos a fraqueza dos apóstolos para com mais digno eterno dos amigos, por que não havemos de ser mais fáceis em desculpar as faltas da amizade, e por que havemos de procurar o nosso conforto só nas criaturas que são falíveis e incapazes de compreender e curar o coração humano? Mas não é essa a aplicação mais necessária das cenas passadas no Jardim das Oliveiras. O que eu quero salientar e oferecer particularmente a vossa consideração é o papel daqueles apóstolos, imitando, reproduzindo na sequência dos tempos, por essa multidão de crente que dormem o sono da indiferença enquanto o coração de Jesus vela por nós e se aniquila para nos dar a vida exuberante da sua graça e do seu amor.
Amigos que dormem – são todas essas almas que fazem profissão de piedade e, entretanto, mergulhadas na moleza e no tédio, não sabem velar uma hora com aquele amigo Divino, para confortá-lo das ingratidões humanas.
Amigos que dormem – ah! Não o sejamos nós, para não sentirmos a tristeza imensa daqueles apóstolos, quando dos lábios lívidos de Jesus ouviram essa queixa dolorosa: “Podeis dormir agora e descansar. Basta. Chegou a hora. Eis que o Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos pecadores.”
Amigos que fogem
Era meia-noite. A lua inundava o vale do Cédron com sua claridade de prata e se filtrava pela ramaria das árvores do jardim, desenhando formas bizarras e impressionantes. Tudo dormia, as aves nos seus esconderijos verdejantes, as ovelhas nos seus apriscos, os cães errantes à beira dos caminhos e os homens nas suas habitações suntuosas, ou nas suas tendas humildes. Tudo era calmo, tudo silente. A própria alma de Jesus entrar na quietude dos heróis que vencem porfiados combates e experimentam o antegosto da vitória completa.
Na majestosa gravidade de um general que comanda um punhado de bravos, Jesus após a queixa pronunciada contra os seus apóstolos, reúne-os todos e lhes fala firme e resoluto: “Levantai-vos, vamos! Aproxima se aquele que vai me trair!”
Os apóstolos sacudindo o torpor em que jaziam, alongam a vista por entre as árvores e eis que divisam além, à luz intermitente dos reflexos que atravessam a coberta verdejante, uma figura sinistra que avança para eles. – Judas! exclama todos.
Sim, era ele. Rápido como o chacal que se lança sobre a presa incauta, o traidor aproxima-se de Jesus, toma entre as suas aquelas mãos divinas, e naquele rosto, ainda perfumado pelos lábios da Virgem Santíssima, ousa tocar de modo sacrílego, com sua boca nefanda e asquerosa, dizendo” “Mestre, eu te saúdo.”
Era o sinal convencionado. Uma turba de homens ferozes armados de espadas e paus, surge de todos os lados, iluminando com seus archotes o lugar para sempre memorável da traição. – “Amigo, a que vieste? Por um ósculo entregas o Filho do Homem?” Depois dessa censura tão mansa e tão misericordiosa, dirigida ao apóstolo ingrato, Jesus encara altivamente os sicários que o rodeiam, mostra-lhes por duas vezes o seu poder divino, prostrando-os por terra a uma simples palavra, e se entrega, por fim nas mãos dos seus inimigos.
Houve entre os apóstolos o movimento de espanto e indignação: “Senhor, dizem eles, devemos resistir?” E sem esperar resposta, Pedro fere o servo do Pontífice, e só embainha novamente a sua espada por ordem do Divino Mestre. Tudo fazia crer que os apóstolos saberiam proceder como verdadeiros amigos. Entretanto – nova e cruel desilusão! – fugiram todos, diz o Evangelho. É verdade que Jesus dissera: “Se é a mim que procurais, deixei aos meus discípulos que se retirem.” Mas quem não entende a generosidade de um coração que não quer o sacrifício dos seus amigos? Quem deixaria de velar à cabeceira de um enfermo querido, por que este se aflige de ser incomodado aos que o rodeiam?
Os apóstolos não compreenderam essas delicadezas da amizade. Vencidos mais uma vez pela covardia, deixaram abandonado, à mercê de seus inimigos, aquele a quem há três anos seguiam, com os protestos da mais firme adesão e fidelidade.
Assim realizou Jesus a profecia de Isaías: “Olhei em torno de mim e não encontrei quem me auxiliasse; procurei não achei quem me confortasse.”
Caríssimos irmãos. Não se extinguiu a progênie dessa classe de amigos: os amigos que fogem; que abandonam; precisamente quando mais se devia esperar a sua adesão e o seu conforto. Essa dor Jesus continua a experimentar na vida da sua Igreja. Na hora das perseguições, nos momentos e que a impiedade alça o colo arrogante, para cuspir injúrias e desprezos contra a instituição indestrutível do catolicismo, ou nos rápidos instantes de um insucesso talvez providencial; nos triunfos do espírito mundano contra austeridade da moral cristã ou na perspectiva dos sacrifícios que a consciência impõe aos filhos do Evangelho – quantas e quantas vezes não se repete a vergonhosa fuga, o abandono covarde em que os apóstolos deixaram o Divino Mestre!
Nós, porém, beijando as cadeias que ligam os braços de Jesus, prendamo-nos indissoluvelmente a sua Igreja, para acompanhá-la sempre mais suas alegrias e nas suas amarguras, nos seus combates e nos seus triunfos, nas suas humilhações e nas suas glórias.
Amigos que renegam
Caminha rápido o bando sacrílego e em breve penetra as ruas silenciosas da cidade, levando Jesus ao Palácio de Anás. Anás não era mais o sumo sacerdote. Mas, desde a sua deposição desse cargo, havia quinze anos, não perdera o prestígio entre os judeus. Segundo os historiadores, era ele o pontífice de fato, e Caifás, seu genro, nada resolvia que não fosse sobre a sua inspiração. Foi Anás, diz Renan “o ator principal dessa trama horrível”. Não era, pois de admirar que o divino prisioneiro fosse antes levado a presença desse homem astuto e audaz, que instigara a perseguição contra Jesus e agora o recebia jubiloso, deixando escapar dos lábios um sorriso de triunfo.
Diante dele, de pé, tendo no rosto pálido e meigo a expressão da dor e da piedade, como a ovelha que se deixa conduzir ao sacrifício, sem resistência, sem um gemido, eis a vítima divina, que aguarda o juízo mais tumultuário e revoltante que se possa imaginar. Anás, que talvez considerasse Jesus um dos chefes das muitas seitas secretas existentes na Palestina, desde a invasão de Herodes, começou a interrogá-lo sobre sua doutrina e seus discípulos. Ao que Jesus respondeu: “Eu falei abertamente ao mundo; sempre ensinei na sinagoga e no templo, onde se reúnem os judeus, e nada disse às ocultas. Por que me interrogas? Interroga antes aqueles que me ouviram; eles sabem o que eu ensinei.”
Diante da visível humilhação infligida a Anás por estas palavras, um de seus servos, talvez o mesmo Malco, que fora miraculosamente curado no Jardim das Oliveiras, descarrega uma cruel bofetada no rosto sacrossanto de Jesus. Não se pode conceber maior afronta nem maior ingratidão!
“Ó meu Deus, exclama Santo Efrem, como o universo inteiro não se abismou nas trevas, ao ver vos receber tamanho ultraje! Ó, Criador, que do pó tirou homem, recebe uma bofetada da mão que ele formou.”
E Jesus! Que mansidão, que paciência! – “Se falei mal, dize-me em que, mas se falei bem por que me bates?” Espíritos altivos e impetuoso, que não sabeis suportar sequer uma palavra desatenciosa, vede como a majestade infinita se vinga das afrontas recebidas!
Enquanto esta cena se passava diante de Anás, no pátio de seu Palácio um episódio notável começou a pôr em triste evidência a figura do apóstolo Pedro, que arrependido talvez de haver abandonado a Jesus, conseguira ali penetrar, em companhia de João.
Pedro amava a Jesus, tinha entusiasmo por Jesus, não compreendia mais a vida sem Jesus. E prova disso foi a firmeza com ele se comprometera a antes morrer do que renegar o seu querido Mestre. Mas faltava-lhe a prudência; confiava demasiadamente em si e ia pagar caro a sua presunção, realizando o que predissera Jesus: “Antes que o galo cante duas vezes, tu me negarás três vezes.”
De fato, três foram as negações de Pedro; três vezes, com malícia progressiva, negou ele ao seu Mestre, tornando-se réu da mais espantosa apostasia. A primeira vez, no Palácio de Anás, serviu-se de mera negativa. À afirmação de uma criada, que dizia tê-lo visto com Jesus, respondeu: “Não o conheço, não sei o que estás dizendo”. Foi o primeiro grau da queda. Logo depois, no átrio de Caifás, outra mulher o avistou e disse aos presentes: “Este também era da companhia de Jesus de Nazaré.” A negação de Pedro cresceu então de gravidade segundo São Mateus, ele disse, com juramento: “Não conheço semelhante homem.” Finalmente, mais uma vez o reconheceram alguns detalhes individuais, principalmente por sua linguagem de galileu. Diante dessa existência, que ameaçava comprometê-lo, Pedro se deixou arrastar completamente pela sua fraqueza, esqueceu todos os seus compromissos e o seu amor ao Divino Mestre e começou a fazer imprecações e a jurar que não conhecia aquele homem!
Vede, meus caros irmãos, a que ficou reduzido aquele apóstolo ardoroso, companheiro inseparável de Jesus! Depois de o ter abandonado, nega-o covardemente diante dos criados do Pontífice! Mas eis que nesse instante Jesus atravessa o átrio do palácio, olha para Pedro e, nesse olhar meigo e compassivo, diz toda a mágoa imensa que lhe vai no coração.
Um rio de lágrimas então irrompe dos olhos do apóstolo, lágrimas que correram durante toda a sua vida, para exemplo aos muitos Pedros que o imitam na queda e se recusam a imitá-lo na penitência.
Caríssimos irmãos. Eloquente, sem dúvida, é a falta daquele que devia ser mais tarde o Príncipe dos Apóstolos. É mais ou menos a história de todas as quedas, e não há quase quem não possa contar em sua vida traços semelhantes na imprudência, na fraqueza e na ingratidão. Mas há um pecado que é particularmente a reprodução dessa tríplice falta de São Pedro: é o pecado dos que fingem desconhecer a Jesus, dos que se envergonham da sua companhia, dos que o renegam na vida pública. Cristãos batizados, filhos da Igreja, educados no seio de famílias piedosas, tendo entrelaçados na religião os principais fatos de sua vida, sentido toda a grandeza dessa crença na virtude de sua esposa, sua mãe ou de sua irmã, quantos não vemos, entretanto, que muitas vezes fingem não ser católicos, que se envergonham de professar a sua fé, que acompanham a incredulidade sem ser incrédulos! No dizer de um escritor, “não estamos mais no tempo dos falsos devotos, mas dos falsos incrédulos que praticam a irreligião sem crer nela.” É o domínio franco do respeito humano.
Num salão onde se reúne o escol da sociedade, todos são católicos, mas poucos têm firmeza na sua crença. Dê-se um incidente religioso qualquer, e vereis quase todos desertarem das fileiras católicas, acompanhando a impiedade na desconsideração e nas censuras à Igreja e aos seus ministros. É o pecado dos nossos tempos, é a fraqueza característica do nosso meio. É a classe dos amigos que renegam, dos amigos que se acovardam à voz dos laicos do mundo!
Senhor! A esses fracos, a essas pobres almas que fingem não vos conhecer e se envergonham de vossa Igreja e da companhia dos vossos filhos, lançai o vosso olhar de misericórdia, para que se arrependam de sua fraqueza e vos acompanhe sempre com a intrepidez de amigos fiéis e dedicados, honrando-se por toda a parte com o título glorioso de cristãos e de católicos.
Caríssimos irmãos. Quando os amigos procederam por essa forma, quando os íntimos de Jesus que lhe acompanharam os passos e sentiram de perto a sua divindade, se mostraram tão fracos e tão ingratos para com seu querido Mestre, que havíamos de esperar do povo, tão variável como o oceano, sujeito ao influxo de todos os ventos? Não era, pois, de admirar que quase todos aqueles que acompanhavam cheios de entusiasmo a Jesus e recebiam dele benefícios de toda sorte se convertessem tão depressa em ferozes inimigos. “É réu de morte! Crucifica-o! – são os gritos que partem logo de todos os lábios, inspirados pelos chefes dos judeus. Essa resolução é sancionada covardemente pelo procurador romano e, dentro em pouco, Jesus, crucificado no alto do calvário, após três horas de agonia, consuma o mistério da nossa Redenção.
Ah! Mas ele dissera: “Se eu for levantado sobre a terra tudo atrairei a mim”. E por isso aqueles mesmos apóstolos fracos e covardes se transformaram em heróis e morreram corajosamente pelo seu Divino Mestre.
Devemos, pois, esperar, meus caros irmãos, que esse mesmo Jesus Crucificado, pela sua paixão meditada e impressa em nossas almas, produza em nós igual transformação, tornando-nos fortes e valorosos cristãos, amigos verdadeiros e dispostos a estar sempre ao seu lado, nas glórias do Tabor e nas humilhações do Calvário.
Senhor Jesus Crucificado! É a súplica que neste dia vos dirigimos, arrependidos de nossas fraquezas e de nossas ingratidões. Quando, daqui a pouco, aproximarmos nossos lábios de vossa em imagem, depois de adorar três vezes a vossa Divindade humilhada na cruz, ó Senhor, gravai em nossas almas esse símbolo querido de nossa Redenção e estreitai-nos no amplexo do vosso amor, para que sejais sempre a nossa luz durante a vida, a esperança na morte e a recompensa na eternidade!
Campinas, 21 de abril de 1916 – Sexta-feira Santa
Dom Octávio Chagas de Miranda
Saiba mais sobre a vida e a vocação de dom Octávio Chagas de Miranda.
Inspirador e maravilhoso. Servirá para meditarmos na Semana Santa.